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Quem conta dois contos

Quem conta dois contos

12
Mai20

1958

arp

Mesmo para 1958, o gabinete do director do jornal era relativamente pequeno, como o próprio. Pessoa de barba mal semeada, mas assumida, de óculos de meia-lua e cabelo a rarear colado à cabeça com fixador, vestia um fato de giz com brilho de uso. As faces encovadas sobressaiam sobre o papillon que usava em vez da gravata. No momento tinha os óculos sobre a cabeça e usava um cigarro aceso na mão esquerda para gesticular. O ambiente estaria empestado se a proximidade do trópico de Câncer não lhe permitisse ter a janela sempre aberta. Isso e a eventual necessidade de fuga de alguém que tivesse sido gozado pelo jornal. O seguro morreu de velho.

“Então quer ser nosso colaborador?” a pergunta foi feita quase de forma afirmativa, sabia que não podia recusar a colaboração de quem tinha sido recomendado pelo governador.

“É verdade” João, recentemente promovido a capitão, estava fardado e lacónico

“O senhor capitão tem experiência?” um sorriso aflorou-lhe os lábios

“Em jornalismo não, mas como o objectivo é de proporcionar notícias, trago um esboço de uma história” acabou a frase entregando umas folhas dactilografadas na sua Remington.

O director recebeu as folhas e desceu os óculos para os olhos e começo a ler. A dada altura começou a ler em voz alta:

…”ao final do dia a caravana chegou a um oásis. O ritmo lento do dia acelerou. O contraste bicolor de azul / Siena finou-se tendo à paleta acrescentado o verde das palmeiras com os seus salpicos acastanhados das tâmaras e o azul negrume da água. Ao lusco fusco começou o movimento dos homens levando os camelos e os dromedários para beber e das mulheres organizando os recantos das famílias. As crianças enfiaram-se dentro de água molhando-se com salpicos. No poço uma fila organizara-se para recolher a água para as refeições. O silêncio do dia tinha acabado. Sim o deserto é também silêncio. O reflexo da lua era agora visível no espelho de água. As falas, poucas, que os Tuaregues não desperdiçam água nem palavras, ouviam-se sobrepostas ao crepitar dos lumes feitos para as tagines. O rebanho fora afastado e libertava uns balidos que iam reduzindo de volume. Por fim começaram a libertar-se os aromas, as especiarias nas tagines tinham começado a cumprir a sua função menor…”

O director levantou a cabeça, pousou as folhas na secretária atafulhada com dezenas de outros papéis, sem qualquer arrumação óbvia, repuxou os óculos para a testa e coçou o nariz.

“Sabe capitão, jornalismo não é romance. Falar da lua falam os poetas e os astrónomos – remexeu-se na cadeira – o que o senhor escreveu é um esboço literário, não uma peça, um jornalista tem de contar uma história e em duzentas palavras, quando muito e o senhor ou tem muito boa memória ou tomou boas notas, coisa muito importante num jornalista”

“Tenho boa memória, fotográfica”

“Quem primeiro discorreu sobre a memória não foi nenhum psicólogo, foi Camões”

“Camões?”

“E do bem, se algum houve, a saudade”

“Estou a ver, mas, bem, há jornalistas que escreveram romances…” foi interrompido

“Quem, o Hemingway? Esse comunista? O que ele escreveu, por exemplo no Fiesta, é um artigo jornalístico, longo, demasiado longo” pontuou a frase com uma coçadela na barba.

“Bem ganhou o Nobel”

“o que ele ganhou mesmo foi o Pulitzer, o Nobel dão a qualquer comunista”

“Não se enerve, senhor director, não se enerve” João tinha indicações explicitas para não sair do jornal sem o lugar.

“Um artigo de jornal é algo que tem de ser contado em mais que um sintético telegrama e menor que um conto infantil” usou do indicador para apontar um quadro imaginário onde esta evidência estaria aposta.

“No fundo o senhor quer textos que possam ser lidos por qualquer um, num espaço de tempo curto”.

“Na casa de banho, na casa de banho”.

“E o estilo? Quer uma coisa impressionista, como na pintura, esfumar ligeiramente os factos, mas acrescentar-lhe cor, ou tipo a exagerar, quase caricatura neorrealista ou cubista, que não terá nem a forma nem a cor da realidade e que cada uma pode interpretar à sua maneira, ou distorcendo a realidade

“Estou a ver que tem sentido de humor” o tom era de irritação contida.

“Sabe que contar uma história em três minutos só mesmo os poetas conseguem, e de preferência com música, numa canção”

“bom, vamos experimentar, começa com uma coluna sobre a nossa identidade” um sorriso perpassou-lhe nos lábios

 

06
Abr20

a revolução em marcha

arp

A notícia corria na web, mas de forma dissimulada. Cada consumidor tinha que se inscrever numa plataforma. Usava um nome falso, morada falsa e tinha de prestar um juramento em conforme manteria segredo. Toda a actividade era altamente ilegal, apesar de ser prestada por voluntários, mas como diziam as notícias, também os terroristas são voluntários. Comemorava-se o quinto mês do encerramento. O Grande Irmão continuava a proibir os relacionamentos. Esperava-se reduzir a população do planeta em 500 milhões. As estruturas de afecto haviam sido destruídas. Afectadas pelo medo, as pessoas tinham deixado de se olhar, passavam umas pelas outras baixando os olhos, era a forma, diziam-lhes, de reduzir o perigo de contágio. A palavra afecto tinha sido retirada do Novo Dicionário da Nova Língua Oficial.

Não se sabia quem já estava curado e quem era um PEPASAPU – um perigo para a saúde pública – pelo que continuava o Afastamento Preventivo. Há muito que as empresas regressaram ao trabalho, excepto as do turismo, pretendia-se o mínimo de contacto com o exterior. As fronteiras mantinham-se fechadas, entre dentes chamava-se a cortina de aço.

Um dia do terceiro mês as forças de segurança haviam prendido dois homens que se tinham abraçado. A pena de 3 anos de desterro aplicada serviu para garantir que não haveria segundos exemplos. Nesse dia também a palavra abraço foi retirada do dicionário. Um casal apanhou uma pena ainda mais grave, tinha-se não só abraçado como beijado.

Aos poucos a reacção tinha começado, nas farmácias aderentes, únicos estabelecimentos que podiam ter uma sala não vigiada, para tratamentos, os revoltosos juntavam-se, dois a dois e abraçavam-se. Por norma um abraçador fazia um turno de seis horas.

Na rua os abraçadores reconheciam-se por sinais discretos.

Até que um dia a revolução começou, num acto simultâneo diversos falsos recitadores, já há muito que não havia jornalistas, apenas recitadores de notícias forjadas, num directo, uma falsa recitadora havia abraçado um ministro. Foi o caos sobretudo porque foi apanhado em grande plano e o ministro sorriu e instintivamente respondeu ao abraço.

Foi o dia um da revolução.

05
Abr20

Viagem 2

arp

A irresistível atracção pela fuga levou-me de novo a dar uma volta pelo passado. Cheguei, eram pouco mais de sete da tarde. Todo o espaço estava posto para as festas, era a feira da Piedade. No ar a mistura de cheiros a farturas, cachorros, pipocas e cerveja. Num canto mais afastado um grelhador de febras lançava fumarolas no ar. As febras, demasiado salgadas iam sendo entremeadas em bolas de pão caseiro. Um estímulo auditivo intenso, entre os risos, inícios de frases ditas alto, por quem tinha já emborcado vários copos de três e umas imperiais, a música do carrossel, um hit do Nilton César, “receba as flores que lhe dou” seguida da “namoradinha de um amigo meu” do Roberto Carlos. Por cima da algazarra ouviam-se as vozes dos promotores dos carroceis, sentados numa girafa parada.

Uma mulher em cima de um atrelado anuncia cobertores de papa. A voz saia-lhe por um megafone que empunhava com a mão esquerda enquanto com a direita revolvia os cobertores.

Numa tenda vendiam-se bugigangas de plástico numa miscelânea de brinquedos e eventuais utilidades para a cozinha. Noutra banca, colares de pinhões e chupa-chupas piramidais que nos faziam cuspir papel misturado com açúcar com sabor a laranja.

A agitação do andar levantava o pó omnipresente.

Numa barraca, de zinco ondulado, três mesas de matraquilhos esperavam-me, já lá paravam três amigos, vestiam calças à boca-de-sino e pullvoers dois números abaixo e o cabelo 3 números acima. À moda, a excepção era A. com calças Wrangler vindas de uma ida a Espanha em conjunto com os Solanos e duas garrafas de Brandy .

As partidas foram disputadas na versão “perde pagas”. Fui o último a chegar, também vinha de tão longe. No perímetro tinham ficado a Maxi Puch de L., vermelha e a Vela Solex de R. de um improvável amarelo. No parque improvisado outras viaturas a dois tempos, com motor Sachs e cor laranja. O dia não era de jantar, mas de ir comendo. A ronda dos cachorros acabava nas farturas, onde um homem, com um pano da loiça por avental, despejava a massa numa sertã com óleo quente com uma seringa tirada de um gigante sem nome. A bebida, em excesso, cerveja Clock, não era para tirar a sede, mas a passagem da certidão de adulto, de homem. E foi assim que L., já bebido em excesso, foi enfiado nas cadeiras que rodopiavam presas por correntes. O movimento centrífugo punha os passeantes perto da horizontal, mas o estômago não aguentou.

O fim de noite, foi passado encostado às varolas fazendo corridas de patos adquiridos ali mesmo. A distância às raparigas era por vezes tão grande como a deste percurso. Noites como aquela não eram mistas.

O álcool tinha de ser solidificado, fomos ao Pão com chouriço, a bebida, com justificações diversas, passou ao pirolito e larangina C.

A noite acabou fria, em casa, com uma tosse tetatralizada para justificar o Vicks que escondia o cheiro do tabaco e do álcool.

Amanhã? Bem amanhã…

05
Abr20

viagem 1

arp

Vou confessar-vos uma coisa: furei o bloqueio e viajei. É verdade, mas garanti que não precisava de quarentena e que não contaminaria ninguém. Já voltei e consegui cumprir esses dois objectivos. Fui o mais longe que consegui. Atravessei a barreira do tempo e fui ao passado. Consegui aproveitar uma inflexão do espaço e andei para trás cinquenta anos. Cheguei à escola, estavam todos de bata branca, cantavam o hino enquanto a bandeira era hasteada. Eram todos bastante magros. Havia uma excepção apenas. O tempo estava ameno e as árvores estavam floridas. Mas já passara a hora do almoço, o cheiro de quem tinha passado a manhã a correr absorvia o aroma das duas tílias do passeio fronteiro.

Entrei após o hino e sentei-me na carteira dupla com o tampo levadiço e um buraco para o tinteiro que já ninguém usava. Se levantássemos o tampo podíamos ler “o Carlot tem pilhos” em escrita esculpida no pinho, a pressa ou a incompetência retirada duas vogais à frase, mas o espirito não se perdera. Era o momento da geografia, e por detrás do cheiro a soalho lavado, eram declinados os rios de Portugal “o rio Douro é um rio que nasce nos picos da Serra de Urbión e tem como afluentes em Portugal, os rios Inha, Águeda, Côa, Sabor, Tua, Pinhão, Torto, Távora, Corgo, Varosa, Paiva, Tâmega, Sousa e Tinto.” Os nomes foram senod escritos a branco no quadro preto, com um chiar arrepiante do giz. Seguiu-se um tempo, que pareceu infinito, em que a declinação foi repetida, como um mantra, ou uma ladainha, a cada palavra havia um batimento no chão com uma cana, marcando o compasso. Só se sentiu o fim quando foi audível o toque de um sino. Todos fitaram o professor aguardando a ordem para se sair, ordeiramente. Quando a ordem foi dada o ruído das solas cardadas ressoou por todo o edifício. Para trás ficaram dois, que sabiam ir ser objecto de chacota ou mesmo de agressão. Olhava para um laboratório darwinista.

O recreio, de chão térreo, tinha duas balizas improvisadas e uma oliveira. Ambos eram disputados, se bem que garantido, só o dono da bola e mesmo assim à baliza.

No tardoz enfileiravam-se os mais velhos para saltarem ao eixo. Outros, sobre um círculo traçado, arremessavam os piões, “à homem”, por cima, ou “à menina” para a frente. Na zona mais húmida fora feita uma cova e jorravam berlindes multicolores. Ou melhor de várias cores. Multicolor apenas um, o “abafa”, o terror dos proprietários mais novos que jogavam com esferas metálicas ou berlindes plásticos. Preciosidades, transportados em sacos de tecido com fecho de corda.

Sob a oliveira onde vários alunos se empoleiravam como cabras no magreb, jogava-se à navalha sob o olhar do professores.

Uma continua puxava pelo orelha de um primeiro-anista que fizera “alguma”. Mas o ruído e a agitação manteve-se, pelo menos até ao novo toque do sino.

Acompanhei a saída, uma passagem em casa para tirar a bata e lanchar e rumo à catequese, no frio de uma sala de pedra, que não aquecia nem nos agostos mais intensos.

O regresso foi rápido, abri os olhos e estava no dia 31.

 

 

 

14
Mar20

Luís

arp

 

Luís acordou sentindo a pressão da terra dura nas costas. Mas fora um pingo solitário na cara que o tinha despertado. Abriu os olhos cinzentos e apercebeu-se de um céu fechado de nuvens. Sentou-se. O cheiro a maresia solidificava o ar. Viu que se encontrava num promontório sobre o mar, mar encoberto como nos dias sebastianistas.

Ao passar a mão pela cara sentiu uma barba a despontar, não se barbeava havia 3 dias, desde que começara esta aventura. Aventura talvez não fosse o termo correcto. Nas aventuras temos sempre, ou quase sempre o lado positivo, da procura, da descoberta, de novos e maiores horizontes. Aqui era um pouco o inverso.

A cabeça doía-lhe. Aos poucos começou a recordar-se das razões da sua presença naquele local. Resolvera, ponderadamente, ou não, o tempo é uma decorrência da vida, não produz bom senso, que estava preso a uma vida sem sentido, cumprindo rotinas diárias, ou anuais. Precisava do seu espaço. Se fosse mulher Balzac teria com ele alguma complacência, mas para com os homens não existem esses sentimentos benevolentes, passam da infância à idade adulta assim que formalizam uma qualquer relação.

A relação com Rosa, feita de exigências, de tempos e de regras, finara-se com a última queda da folha. Não praticara um luto. Fora como quando se acompanha um doente crónico de uma doença grave, o luto vai sendo feito ao longo do processo.

A relação, como muitas, era como quando usávamos uma pasta de dentes. Primeiro consumíamos a golfos, quando se aproxima do fim, com muita moderação, no final espremida até que acabamos por cortar o involucro, com uma tesoura para nos apercebermos que nada havia já para aproveitar. Era só mesmo involucro.

Desapropriara-se do peso da sua história. Reduzira o passado a duas malas e uma mochila e voara para uma pequena ilha. O trajecto obrigara-o a vários transbordos sendo o último feito num barco dual, que servia para transporte de passageiros e para a pesca. Nos dias turísticos era um cruzeiro, nos outros uma traineira.

Depois de despejado em terra, quando o barco atracou no cais de betão e foi lançado um passadiço metálico para que saíssem os passageiros, despojou-se da companhia. Eram quatro os viajantes nesse dia, três homens e uma mulher. De qualquer modo pensou que não voltaria a sair dali. A ondulação na sua mistura explosiva com o cheiro a gasóleo e aos restos das cavalas mal retiradas do convés haviam-lhe revirado as tripas. Se tivesse ido nas tropas de Pizarro não se teria oposto à queima do navio.

Arrastou as malas para fora do trilho que fora promovido a rua, subiu um pouco e caiu no chão. Deitou-se de costas, com a cabeça apoiada na mochila e adormeceu.

O porto tinha um quebra-mar feito de pedras arrumadas como se fosse a calçada de gigantes. No tardoz um corredor de betão amparava as pedras que sofriam as crises existenciais de Neptuno e além desde corredor o ancoradouro onde aportavam os barcos. Aos barcos eram dados todos os graus de liberdade para que não se partissem aquando das marés ditas vivas, como se houvesse marés mortas.

A ideia de abandonar a sua casa, um segundo andar, sem elevador, mas com uma área generosa e com vista para o rio aparecera do nada, como uma epifania. A casa tinha sido herdada da avó, com quem vivera quando frequentara a universidade. Os pais haviam ficado na cidade do interior. Com a morte da avó aquele neto e filho único herdara e assumira a casa, como algum pecúlio que lhe dera um certo conforto financeiro. Se não fizesse grandes loucuras podia sobreviver só com este rendimento. Apesar disso arranjara um emprego, do curso de engenharia aproveitara-se a vertente matemática e acabara numa empresa de aconselhamento de gestão. Assim, em casa, como nas empresas a que dava assistência, reorganizara os espaços, pintara as paredes e tectos, as primeiras de um amarelo suave, as madeiras também haviam passado do acastanhado para um branco casca de ovo. Libertara-se da mobília de tremidos do escritório do avô e fizera nessa divisão o seu quarto, despojado, uma cama D. Maria, que sempre fora sua, com embutidos de marfim numa madeira de vinhático. Não dispensara a tecnologia e substituira o espelho por um plasma. Do antigo quarto da avó nada ficara, encomendara um armário que transformou o quarto num dressing. Rosa desenhara o armário e sobretudo enchera-o. A sala tinha agora três sofás brancos unitários. Mantivera nas paredes os quadros, cópias, originais da casa. Fora dali que ela partira. Ele vivera ali dez anos. O tempo da vida académica dos quais quatro com a avó, dois anos só e três com Rosa. A decisão da vida “a dois” não acontecera num momento. Não tivera um alfa em que ele lhe pedira, ou ela se insinuara. Não fora por erupção como nos vulcões, fora por sedimentação, como nas lezírias. E como diz o evangelho não se deve construir a casa sobre a areia. Ela ficara uma noite porque tardaram vindos de um fim-de-semana, noutra deixara uma escova de dentes e de cabelo. Uma camisa de noite, umas calças, uma roupa que sujara no jantar e que resolvera lavar de imediato. Aos poucos ela, ou as coisas dela, foram-se apoderando do espaço. Mas o dia-a-dia pode matar as relações. Ele começou a sentir-se como os sherpas, carregado, esforçado para que outros tivessem a comodidade na travessia. Até que se começar a sentir-se asfixiado, com falta de oxigénio. Ela começara a chegar cada vez mais cedo, vinda do seu atelier e ele cada vez mais tarde. Até que a bisnaga ficou vazia e ele resolveu cortá-la mesmo. Num anúncio sereno, disse-lhe que iria uma semana para fora para ela ter tempo de sair. Não houve um drama, nem grandes perguntas. Era uma constatação, como quando o médico nos faz um diagnóstico de uma doença que já assumimos que temos. Não são só as rochas que sofrem erosão com a passagem do tempo.

Essa semana foi passada ou passeada, pelo interior do país e pelo seu próprio interior. A introspecção necessária, o exame de consciência, como dizia a avó e a catequista em tempos idos. Fora nessa busca que começara a germinar a ideia de fuga à sua realidade.

Nesses dias pensou como eram diferentes os tempos. Os avós haviam namorado por carta. O namoro resistira a quatro anos de ida à guerra do avô. Luís lera essas cartas, que a avó lhe mostrara. Eram um misto de interrogações filosóficas e de saudade. Por vezes saía um poema. Já não há canções de amor, como dizia a cantiga, pensou. Quem é que consegue resumir o amor a duzentos caracteres de um Twitte? Ou fazer poesia, incorporar uma métrica e uma acentuação numa mensagem de telemóvel? Como teria feito, hoje, Pessoa?

E como sabemos da física, o difícil para por um corpo em movimento é a força inicial que se aplica. A partir daí, sem atrito, podemos chegar ao movimento perpétuo. A força foi-lhe aplicada nas costas quando viu a casa vazia, sem um bilhete, apenas uma chave sobre a cómoda da entrada.

Não queimou os barcos, fechou a casa e levou a chave com ele. Teria um porto de regresso.

A escolha daquele lugar em concreto e de uma ilha, prendia-se com a improbabilidade de ser encontrado. Nenhuma Rosa o imaginaria num local incivilizado, sem códigos complexos de linguagem e protocolos não escritos, mas assumidos, sobre as condutas a ter. E sobretudo a suposta cultura da tribo, algo a que não se devia, nem podia fugir.

Conseguira um contacto na ilha que lhe dissera haver três casas para arrendar. Escolheu a de preço e geografia intermédia.

A ida necessitou de vários meios de transporte. No despojamento vendera o carro pelo que usou transportes apelidados de públicos.

Começou por um táxi, um transporte bicolor, munido das duas malas a que o motorista olhara desaprovadoramente e que havia colocado na bagageira com um gemido desnecessário. Nitidamente não lhe apetecia fazer o frete. Quanto depositou as malas na bagageira aproveitou o momento para cuspir para o chão. A mochila colocou-a António ao colo. Sentou-se no banco da frente, sabia, por experiência, que por qualquer razão, os monólogos dos taxistas eram mais esparsos quando o passageiro viajava à frente. Talvez os considerassem como iguais o que reduzia a necessidade missionária para uma conversão durante o trajecto.

O rádio informava sobre os movimentos dos mercados de capitais, notícias ouvidas com diligente interesse pelo motorista. Só quando o som de uma música cubana substituiu a voz grave que debitava os índices resolveu falar.

- Já viu o estado em que está a economia.

- Hum, hum – era sempre recomendável não soletrar palavras, bastavam monossílabos que como os peões de brega coadjuvavam a lide. Intervenções discretas.

O motor era ruidoso e o taxista debitava a sua ladainha baixo. Luís tentou manter os olhos abertos naqueles trinta minutos.

À chegada à gare foram trocadas notas pelas malas e uns grunhidos de ambos os intervenientes definiu a caducidade daquele contrato.

O dia ia pelo seu meridiano pelo que a gare estava quase vazia. Apenas idosos, que se podiam dar ao luxo de viajar “à hora do trabalho”, se movimentavam lentamente pelos pavimentos cinzentos polidos por milhares de pés.

Comprado o bilhete, em primeira classe, local onde esperava estar blindado às curiosidades mundanas do eterno curioso passageiro da frente.

Apanhou o rápido das quinze e trinta e dois, que partiu às quinze e quarenta e quatro. Interrogava-se sempre com a precisão dos horários e a imprecisão do seu cumprimento.

Conseguiu o objectivo, viajou só na carruagem. O “pica” apareceu e desapareceu mastigando uma pastilha elástica com a força de quem deixara de fumar recentemente.

Teve de fazer uma mudança de linha, apeou-se numa estação no meio de nenhures, ficando numa plataforma no meio de várias linhas e onde um casa, de arquitectura modernista, curvilínea e sobrelevada, dava aos controladores a ilusão de uma vista privilegiada. Nas linhas mais afastadas repousavam os refugos de outras viagens, carruagens que transportaram pessoas, mas sobretudo sonhos, eram hoje pesados pesadelos.

Uma estação é ouvida e cheirada. As fonéticas das várias nacionalidades e dentro destas as várias acentuações. E os cheiros, do alcatrão, onde foram submergidas as chulipas, omnipresentes, dos perfumes intrusos e desagradáveis às fragâncias leves e ao cheiro próprio de cada uma das pessoas circulantes. Pessoas sem paragem, como as composições.

O ser humano só se move por duas razões, ou na busca de algo melhor ou na fuga de algo pior. Por vezes consegue-se acumular ambas as razões, como quando se faz uma peregrinação, mas é muito raro.

No caso de Luís era fuga pura, da realidade. Da sua realidade, não que fosse muito pior que outras realidades, de outras circunstâncias, mas quem é que quer saber da circunstância dos outros? Só os sociólogos ou antropólogos e não todos.

O segundo comboio levara-o até à costa, num compasso lento, bom para acertar o passo com o local para onde ia. Como nos primeiros dias de férias, em que todo o nosso ser se esforça por alterar o seu ritmo de vida.

Quando finalmente se levantou, subiu a estrada sinuosa, em macadame, pontuada por árvores de folha caduca, plátanos e muros de pedra musgosa, até ao casario onde o pavimento das ruas mudou para uma calçada de cubos bordejada por uns passeios em lajes de pedra. A paisagem era tricolor, telhados vermelhos, paredes brancas e cantarias cinzentas ou pintadas de cinza.

Dos beirais alguns pombos olhavam-no meneando as cabeças.

De tempo em tempo um candeeiro simples, um poste de betão encimado por um sino luminoso.

O ar húmido e fresco convidou-o a fechar firmemente o casaco para poder usar as mãos no transporte das malas.

O passeio foi feito sozinho, os outros passageiros deviam ter estômagos mais resistentes e haviam seguido directos do barco.

Luís dirigiu-se a uma casa com a porta pintada de vermelho, cor dissonante, mas que era o referencial que lhe havia sido dado para levantar a chave da casa. Não havia campainha, o chamamento era feito “à antiga”, o puxador era um batente, que António usou por duas vezes.

A porta foi aberta quase de imediato, por uma mulher que trazia vestida uma bata e um pano multicolor onde limpava as mãos. Seria septuagenária, abaixo do carrapito tinha uns olhos escuros e penetrantes enquadrados por rugas que lhe definiam o carácter, olhos inchados de cebola da sopa ou da tristeza. A primeira condizia com o aroma a sopa de legumes, de que se ouvia o vibrar do testo na fervura. O aroma mesclava-se com o de carne assada. Para mulher era extraordinariamente parca em palavras. Com um bom dia, um claro e um aqui tem, ficou concluída a relação comercial e entregue a chave.

A primeira imagem que temos de uma casa é olfactiva. Até um cego consegue, ao abrir da porta, dizer a idade, a classe social e o número de habitantes de uma casa. O mais fácil era saber se, num dia de chuva, a casa teria um cão.

No caso esta mulher devia viver apenas com o marido, mas teria certamente familia para almoçar. Familia que justificava a carne que assava e talvez a quase mudez. Podia ser pressa. Estava certamente ocupada.

17
Dez19

o vírus

arp

O vírus alastrara havia tempo. Fora de incubação lenta, mas global. Fora desenvolvido em laboratório e era mais eficaz que o Ébola. Contrariamente a este tinha cura, ou melhor tinha uma vacina que tinha sido inoculada aos seus criadores. O vírus atacava uma região do cérebro que embotava as ideias. Havia também pessoa que estavam imunes, ou se tinham imunizado, mas a maioria tentava aparentar os sintomas para não ser agredido. F. Tinha-se imunizado, desde pequeno que se isolava, agarrado aos livros infantis ignorava os desportos de grupo. Na adolescência consumia as bibliotecas, os clássicos e os apócrifos, a física e a religião. Os romances e os policiais. Os seus companheiros eram pessoas raras, como ele. Juntavam-se aos sábados de manhã para discutirem livros e ideias. Chamavam “agora2 ao grupo, diziam que o acento se perdera na antiga Grécia. O grupo era antigo e fechado. Observadores atentos da realidade foram vendo o desenrolar da epidemia. Começou com os noticiários. As notícias que passavam eram sobre banalidades que eram exponenciadas até parecerem algo de tangível. Uma manifestação sobre uma torneira numa escola era coisa para trinta minutos de noticiário, os directos com a criança que descobrira a torneira avariada, as audições aos pais da criança. Uma entrevista ao avô do canalizador que montara a torneira. Tudo com planos cobrindo o espaço. O assunto era depois retomado nos dias sequentes, com comentadores que explicavam as razões possíveis para o não funcionamento das torneiras. Um historiador era chamado para enquadrar a torneira no tempo. No entretanto a população tomava partido. Uns pela criança a quem uma areia roubara o acesso à água, outros pelo canalizador. Ao terceiro dia o sindicato dos canalizadores entrara na contenda seguido no quarto dia pela associação de pais.

O grupo percebeu que não devia expor-se. Na única vez que tal tinha acontecido a discussão não tinha tido o mínimo de racionalidade por parte dos contagiados. Tinham sido acusados de não perceberem nada de canalização nem de crianças. Nem do contexto social. O argumento de que estavam a ser iludidos não colou e a partir daí resolveram não se manifestar.

Discutiam filosofia, uma disciplina que fora subvertida, aliás como tudo o que levasse a um pensamento critico.

Quando se separavam participavam nas manifestações, empunhavam cartazes com dizeres como “acabem com os cotonetes” ou “fim às touradas” ou o clássico “devolvam-nos os nossos sonhos”.

10
Out19

2083

arp

Anoitecera cedo naquele dia invernoso. J. regressava a casa, trazia o carro, eléctrico, carregado de comida. Vegetais entenda-se. J. nascera muito antes, na era proibida. Numa era em que era legal comer carne e em que os motores a combustão ainda existiam. Hoje, depois dos éditos do banimento, só se podia comer vegetais. Mesmo as crianças tinham sido proibidas de comer carne. O leite só era legal até ao 2 anos de idade da criança e era preciso que existissem vacas que aceitassem ceder o leite para o efeito. Era chamado um intérprete que comunicava com o ruminante e conseguia informar a psp (policia sensibilizadora do povo) da aceitação. Assim, quem transportasse o leite, teria um livre-trânsito para poder circular livremente.

No ano da abolição, foram desmantelados 10 mil milhões de veículos. E em seis meses as emissões de CO2 foram reduzidas a quase zero. A pedra de toque foi a reinstituição da pena de morte para quem emitisse mais que 10 gramas por ano de CO2. Ao fim de um ano já eram visíveis os resultados: as plantas não cresciam, as zonas desérticas foram ampliando os seus territórios, o desaparecimento do gado acabara com os adubos pelo que os solos ficaram pobres, posteriormente esqeléticos pela erosão.

A comida tinha de ser importada dos países que não tinham aderido ao pacto climo alimentar.

O último dos talhantes portugueses, da remota Vila Nova de Foz Côa, fora linchado por uma população enraivecida. Não se sabia se a raiva era por ele vender carne, se foi a demência por abstinência.

As barragens tinham sido todas abertas. As alterações climáticas fizeram-se sentir seriamente. Cada pessoa tinha hoje 2 litros de água por dia, para beber, cozinhar e lavar-se.

Não havia novos satélites por não ser tecnicamente possível colocar foguetões no espaço com motores apenas elétricos. Com a obsolescência dos satélites as comunicações falhavam até serem apenas uma remeniscência do passado.

Passados poucos anos o mundo tinha retrocedido, alterado segundo a lingua permitida, o veganês. Tecnologicamente era comparável ao nível dos anos 40 do século XX.

A linguagem também tinha evoluído, era o que diziam. Já não se podia dizer carne da minha carne por exemplo. O próprio termo carne havia sido eliminado do léxico legal (LL). Assim, hoje dizia-se pip da minha pip.

Mesmo na área vegetal nem tudo era aceite. O feijão por exemplo, que consideravam fazia emitir metano aos humanónos. Sim, hoje eramos humanónomos.

Mas J. era o chefe da resistência. Era um enorme risco, mas estava disposto a corrê-lo. Já haviam passado 40 anos desde que os resistentes tinham voltado a comer carne. Nesse espaço de tempo alguns tinham sido apanhados. Quando havia dúvidas, eram arrastados à força até um hospital militar onde era feita uma ressonância. Esta provava que tinham um cérebro maior que os vegan. Era feito um julgamento sumário e desterrados para ilhas remotas de onde não saíam. Suspeitava-se que alguns tinheriam sido abatidos.

O ensino tinha sofrido uma reforma, as aulas de português tinham sido substituidas por inclusivês, uma das grande conquistas era o ensino da gaguês, tinha-se invertido a lógica, não fazia sentido tentar que os gagos perdessem a gaguês quando era muito mais fácil por os falantes a gaguejar. De igual modo as aulas de educação física eram para a prática do coxear.

Ao princípio alguns professores haviam-se rebelado, mas umas greves estudantis pró clima e outras anti sistema, bem como o saneamento liminar dos corpos docentes haviam resolvido o problema. Hoje o ensino era muito simplificado. E havia sinergias, o curso de medicina havia sido fundido com o de linguas modenas por exemplo.

As igrejas, todas, havia sido fechadas durante umas décadas. Apenas na última década havia reaberto votadas aos novos deuses. Os antigos Jerónimos eram hoje dedidados ao nabo, o deus supremo, outas a deuses menores como a cenoura ou o tomate.

Também tinham começado a colocar uma corgete nas salas de aula, em substituição dos antigos crucifixos.

Os resistentes eram os únicos que tinham a capacidade de constatar que "os outros" tinham agora um olhar bovino. Certamente por tanto pasto que comiam. É certo que era ilegal possuir, divulgar, ou promover fotos ou quadro de vacas ou outros ruminantes, mas havia algum tráfico como outrora com as drogas, hoje todas legalizadas.

Mas hoje era um dia especial. Tinham conseguido passar as seguranças todas e haveria um jantar especial. O encontro era num edifício abandonado onde outrora havia uma exploração de vacas. Era um edifício proscrito e tinha várias vedações e tabuletas, como as antigas zonas radioactivas. De tempo a tempo, passavam uns detectores de metano para saber o nível de perigosidade. Haviam passado 60 anos desde a última vaca e o nível de metano ainda era considerado alto.

No papel que havia sido distribuido pelos resistentes, constavam apenas as seguintes palavras:

Menu

Entrada: melão  com presunto crocante

Sopa: do cozido

Prato de resistência: cabrito assado

Queijos de leite e coalho

Sobremesa: pudim abade de priscos

Por fora a casa parecia assombrada, mas por dentro estava tudo como no século XX. E todas as semanas vinham uns resistentes repor os stoks.

A revolução estava em marcha...

 

21
Set19

Santa Bárbara de Nexe ano de 2053

arp

A Escola, do plano centenário, tinha sido reabilitada ia para três anos. Os centros escolares de antanho haviam colapsado e os novos decisores tinham regressado ao modelo de escolas pequenas mais distribuídas pelo território. Também as pessoas haviam repovoado o outrora interior. Após a queda em desgraça no ano de 2025 da seita fora possível implementar diferenciação muito positiva nos impostos para os “interis”, como agora lhes chamavam os “urbas”. Também os centros de saúde, no interior, tinham mais médicos per capita que os urbanos. As quotas de acesso às universidades eram um ponto mais baixo para quem provasse viver todo o secundário no interis. E as aposentações também tinham um ano de bonús para quem tivesse trabalhado mais de 20 anos a mais de 100km de uma urbe e 2 anos para quem vivesse a mais de 200km. Esta migração como se esperava tinha tido resultados sequentes em toda a economia inteiror. Hoje a professora Isilda avaliava o conhecimento de história de Portugal aos seus alunos de 4º ano. Já sabia como a avaliação, oral, iria decorrer, havia um aluno que tentaria desarmar os colegas. Era educado pelo avô, pessoa do antigo regime.

A professora entrou na sala onde os 20 alunos a esperavam. Era o seu segundo ano naquela escola e tinha garantidos os próximos 10. Assim que entrou veio-lhe à cabeça que o cheiro das escolas era sempre igual. Como o cheiro das igrejas a velas e humidade aqui era o cheiro a crianças e a detergente do chão.

“bom dia meninos”

“bom dia senhora professora”

“a professora não disse meninos e meninas”

O jovem vestia uma T-shirt branca com um legume estampado, como antigamente se estampavam estrelas vermelhas ou a efígie de um qualquer Vara, Che Guevara quero dizer.

“pois não, se reparares, hoje só estão rapazes”

“bem, não sei”

“olha à tua volta”

“a roupa não faz o sexo”

“é verdade e a contestação não elimina a burrice, bom, vamos então começar, Joãozinho, em que época vivemos?”

“vivemos na era real, que se seguiu à era absurda que por sua vez se seguiu à era cenozoica que seguiu a era…” João tinha uma pequena estatura e usava óculos, era um consumidor de informação escrita. Era muito dinâmico, criara a biblioteca da escola que fora desmantelada em 2020”

“muito bem, e podes descrever-me a era absurda?”

“ora a era absurda define-se como o período de tempo que decorreu no primeiro quartel do século XXI e onde ocorreram várias pandemias…”

“E que pandemias foram essas?

“Em áfrica o Ébola, em Portugal o netino”

“muito bem e podes detalhar?

O aluno passou a mão pelos olhos baixou ligeiramente a cabeça antes de recomeçar a falar:

“sim, o netino define-se por uma dependência acrítica dos meios de comunicação em geral e das redes sociais em particular, nesse tempo, a que hoje há historiadores que lhes chamam a era negra, ocorreu a globalização da economia, com base nesse conceito económico, foi também globalizado o disparate”

As frases saiam com segurança, a professora estava orgulhosa do pupilo

“era negra, oh senhora professora…”

“se tivesses vivido nesse tempo e fosses vaiado por teres ideias racionais e próprias percebias, continua João”

“como disparates mais recorrentes o chamado buraco da agulha, que quer dizer falar de questões pontuais e por norma por pessoas sem habilitação, por exemplo, sobre o ambiente falava uma jovem inconsequente, de 14 anos. “

“e a era decorreu até quando?”

“até ter faltado a luz durante 5 dias consecutivos, um bando de cegonhas pousou numa estação eléctrica e foi um apagão geral”

“houve grandes revoltas, as pessoas entraram em síndrome de abstinência, tinham tremores, agitação, insónias, mas como qualquer dependência ao fim de 72 horas  passa e deu-se a chamada grande inversão, as pessoas voltaram a falar directamente e a trocar ideias, foi refeito o conceito de ágora, o termo narrativa foi banido do léxico corrente, a pós verdade foi substituída ou reconfigurada para mentira, hoje mentir voltou a ser crime. As crenças religiosas renasceram agora que os falsos tinham sido limpos…”

“explica-me o que são os falsos por favor”

“bem são pessoas inexistentes, criadas virtualmente por seres sem opinião própria ou sem coragem para assumir a cara e que são mandados por outros e que distribuíam posts na net. Mas como ira dizendo, com a inversão voltou a haver vacas no campo, touradas em Serpa e caçadas na Beira Baixa. As barragens foram restauradas, fechando-se as comportas e recriando as albufeiras. Voltou a haver peixe nos rios, o combate aos fogos voltou a ser desnecessário nos montados já que os toiros resolviam o problema”

“e é tudo?”

“bem, não falei no mais importante, percebeu-se finalmente para onde ia o dinheiro dos contribuintes, depois do absurdo de tudo estar pior e a dívida aumentar…”

07
Ago19

o futuro

arp

Era um rapaz brilhante, mas como o sol e as estelas brilhava no mesmo sítio e da mesma forma. Diariamente. Era como a certeza do pendulo do relógio, mostra a passagem do tempo, mas nunca muda, nada altera. Fechava-se num quarto e programava. Era pelo menos o que pensava. Programava personagens que se moviam num ambiente hostil e se guerreavam com armas de vários calibres e formas. As cores eram berrantes. Era tudo um jogo. Recebia mensagens de louvor, virtuais como gostava. Assépticas. Já não tinha a noção do cheiro de outro ser humano, nem dos sons. Os sons com que lidava eram metálicos, desenvolvidos através do protocolo XPQS5 para os jogadores saberem que eram humanoides. O quarto em que passava os dias e as noites inseria-se numT1 onde se instalara num bairro inacabado de um sonho de riqueza que morrera na praia. Comprara-o na net e conseguira um preço extraordinário, sobretudo porque comprara em conjunto com outros dois, de outros tantos amigos. Amigos na versão facebookiana. Pessoas que tinham um avatar como foto de “perfil”. Eliminara o relógio e a data do computador, tinha de ter o controlo do tempo. Não sabia que ia para cinco anos que não via uma pessoa “ao vivo”. Bem tivera um contacto breve com um canalizador que viera desentupir o lavaliças, mas fora coisa de pouco mais de 15 minutos.

Encomendava comida que lhe deixavam à porta.

Veio-lhe à ideia que o futuro do mundo teria de ser aquele, cada um a viver para si, sem conflitos, estava certo que conseguiriam acabar com os conflitos numa geração

26
Mai19

o sal da vida

arp

A noite estava fria, o vento cortante obrigava L. a dobrar-se para avançar. Apertou as bandas do casaco para o peito e sentiu o alforge junto às costas. O negrume da noite erareforçado pela falta de candeeiros, ou melhor de lâmpadas nos candeeiros e aumentava a sensação de inverno. L. teve um arrepio de frio, mas sorriu. A inclemência do tempo garantia o fraco patrulhamento. Chegou ao destino. Um prédio de 4 pisos, do que foi o século XX, em mau estado daqueles com cantarias envolvendo as janelas como molduras de quadros e beirados em ondas vermelhas que eram rematadas a branco como a espuma do mar. Aparentemente estava totalmente devoluto e abandonado alguns vidros partidos de onde assomavam pombos. A porta principal do prédio, em espessa madeira, que fora verde, estava aparentemente fechada. L empurrou a porta, que chiou e entrou no patamar, em frente havia uma segunda porta e à direita a escada de madeira que dava acesso aos pisos. Empurrou a porta que era uma espécie de guarda-vento sem fechadura. Ouviu os som dos seus passos contra o pavimento de pedra. Desceu uns degraus para a cave, um pequeno lance de apenas 5 degraus. Bateu na única porta existente, resistente dos tempos originais, de cor indefinida. O puxador era móvel para servir de batente. Um “sim” interrogativo ouviu-se. L disse a frase esperada: “os animais são todos iguais, mas uma são mais iguais que outros”. A porta abriu-se e apareceu um homem pálido envergando um casaco de rua espesso. Do interior saiu um ar ainda mais frio e um cheiro a mofo. O homem afastou-se para deixar passar L. O interior era simples, uma sala ampla com pilares estruturais distribuídos de forma geométrica pelo meio. A luz provinha de um candeeiro a pilhas e de várias velas acesas e ancoradas no chão de mosaico cerâmico. O “boa noite” foi o único som audível. Numa decoração babeliana composta por sofás velhos de vários grupos e cores, que haviam pertencido certamente a “ternos” em casas alcatifadas noutra realidade, época ou dimensão. O tempo fora clemente apesar de tudo. Estavam utilizáveis. Três das quatro paredes estavam forradas de estantes de livros, L olhou de perto e viu o Fiesta de Hemingway, Sobre a caça e os touros de Ortega y Gasset e  Animal Farm do Orwell, livros que estavam na black list havia anos. A única parede despida de móveis fora vestida com fotografias de vacas, pretas e brancas que costumavam fazer parte da paisagem, coladas com fita-cola e umas reproduções de gravuras de Picasso, com cenas de touradas. Nos vários sofás estavam sentadas várias pessoas, heterogéneas no sexo, na idade e no aspecto. Saudaram L com trejeitos de cabeça. As palavras eram poupadas. Sabia que o interrogatório começaria dentro de segundos. E assim foi, se tinha deixado o telemóvel em casa e se tinha desculpa para esse esquecimento criminoso se fosse apanhada. Que sim, tinha descosido, propositadamente, o bolso do casado e aberto um buraco no forro de modo a parecer que caíra acidentalmente. O ar de alívio foi notório. O ano tinha começado com mais uma série de proibições. Já não se podia possuir fotografias de gado bovino. Comer carne havia sido proibido logo no ano 3320. No ano em que o calendário mudara da era cristã para a de Akenaton. Mas sobretudo não se podia andar sem telemóvel, um sistema de controlo informático sabia onde estava toda a gente a todo o momento. Os tempos tinham seguido uma trajectória enviesada, as escolas doutrinavam as crianças. Nenhuma criança nascida nos últimos 20 anos havia provado um bolo ou um enchido. A televisão passava apenas futebol e desenhos animados “correctos”. E muitos “debates” e comentários doutrinadores. As crianças eram incentivadas a fazer perguntas na escola. Se alguma perguntasse o que era uma vaca nos dias subsequentes os pais eram presos e levados para um campo de reeducação. Eram sujeitos a um tratamento feito à base de vegetais, na primeira semana só comiam cenoura, na segunda só repolho. Quem sonhasse alto com carne era considerado irrecuperável e enviado para uma ilha. Este dia, ou noite, era especial. Iam compartilhar um cozido à portuguesa. Algo há muito proibido. Cada um ficara responsável por trazer um dos ingredientes e conforme chegavam iam deitando numa panela que borbulhava. O mais difícil foram os enchidos, mas tinha havido alguém que conhecia alguém que tinha trazido de um país distante.

Estava ligada uma televisão onde se via apenas o sal e pimenta da ausência de emissão. L sentou-se e um rapaz dos seus 20 anos ligou um leitor de DVD, objecto do passado. Ouviu-se um estalido e o ecran encheu-se literalmente de vida. L reconheceu o local: era a praça de toiros do Campo Pequeno, em tempos idos e começava uma corrida de toiros. A praça estava cheia, ouviam-se os aplausos. Na semana anterior, tinham visto filmes “caseiros” sobre o pastoreio de vacas e uma matança do porco. Um luxo, S. tinha distribuído sanduiches de presunto e no final um pudim Abade de Priscos, cheio de açúcar e toucinho. Três elementos tinham passado à clandestinidade havia um ano. Tinham sobre eles um mandado de captura por crimes graves. Foram apanhados a traficar açúcar e sal um deles. O outro transportava num saco térmico dissimulado no casaco 3 jaquinzinhos. A vida perdera o sal…

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