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Quem conta dois contos

Quem conta dois contos

16
Jan18

Contador de contos

arp

Hoje vou contar-vos uma história. Do meu pequeno banco, aqui na Jemal-el-Fna nesta cidade de Marrakesh, rodeado de homens morenos trajados de djelabas. Eu não estou realmente habilitado como contador de histórias. Nunca fiz um curso de contador pelo que o tricot palavroso necessário é-me desconhecido. Ouvi, contudo outros contadores e vi, melhor, ouvi a sua técnica: é dar enfase à casca e, se necessário, menos ao recheio. No entanto as histórias são como a luz da lua e as canções de amor – nunca passam de moda. Agora a história: um dia, um pequeno homem, daqueles tão pequenos que sobem aos sicómoros quando querem ver a vida, saiu para passear no campo. Andou, durante meio dia, por veredas ladeadas de giestas, sentindo o cheiro forte a alfazema e a pó. Calçara umas botas de sola grossa de borracha, umas calças leves, mas curtas que lhe deixavam as meias e os magros tornozelos à vista, uma T-shirt, branca, justa, demasiado, ao ponto de se lhe verem as marcas dos ossos, da magreza. O dia estava esplendoroso. Todo ele era sol e azul. Nestes dias os sentidos apuram-se. Ouvimos os cantos dos pássaros e o chamamento do vento. Numa esquina dobrada pelo vento e brotando do chão, como uma fonte, no meio de uma vegetação invasiva e hoje luxuriante, existia branca e verde uma antiga casa de guarda-florestal. O telhado ainda intacto acolhia uma cama de caruma. A porta fora-se, mas as janelas mantinham os vidros, opacizados de anos de carência de limpeza. Bateu as palmas, só por descargo de consciência. Entrou olhando o chão. Nele, um pássaro putrefacto jazia sobre as pedras do pavimento. Era, tinha sido, um estorninho. Os tons roxos e pretos estavam mesclados com uma cobertura de formigas. Havia inchado do rigor mortis passaroco e rebentara. Compondo esta natureza semi-morta e acrescentando um toque de cor estavam gafanhotos verdes espectadores da cena macabra. Um pouco mais à frente o que fora um lagarto era devorado pelas omnipresentes formigas. Levantei os olhos e deparei-me com os olhares enojados de dois miúdos de olhos escuros, grandes orelhas e um pequeno buço. Terão dez anos e tão parecidos que serão gémeos. Ao lado, o pai, de barbicha, barrete de crochet e unhas de guitarrista sorria mostrando uns dentes cativos de quarenta cigarros diários. Estava na altura de mudar de história, para uma mais leve, e pedir outros dez dirhams.

10
Jan18

o pó branco

arp

Carlos dirigiu-se ao hospital. Estava cheio de saúde, pelo menos não apresentava queixas. Uma ida ao hospital era para ele um pesadelo. O cheiro a éter e a doença, os gritos, os gemidos, tudo o incomodava. Mesmo o branco omnipresente, das batas às paredes. Só em situações como aquela, inevitável, cedia. O seu maior amigo, Filipe, ia ser pai. A mulher dera entrada na urgência e como se previa uma “hora pouco pequena” viera fazer-lhe companhia. O hospital pedira-lhes que levassem lençóis, toalhas, compressas e os medicamentes. Eram as novas regras desde que fora decretado o fim da crise. As horas passavam. Chegara pelas seis da tarde e o ciclo das entradas de acidentados não parava. Convidou o amigo para o acompanhar até ao bar. Apetecia-lhe um café. Desde que fora à Turquia viciara-se no café turco, forte e cheio de açúcar. Tirou uma moeda do velho porta-moedas castanho e introduziu-a na máquina. Estranhou, mas não havia versão com açúcar. Esperou que o café fumegasse no pequeno copo de plástico e dirigiu-se ao balcão para pedir o adoçante. “O Sr. Não sabe? É proibido! O açúcar faz mal à saúde” provou o café. Era mau e para mais amargo. Ia a deitar o copo no lixo quando um homem vestindo uma gabardina cinzenta e com uma bolsa a tiracolo lhe segurou a mão. “quer pó branco?” “amigo eu não me drogo” “açucar homem” “sim, claro”, “venha comigo aos lavabos; deixe-me ir à frente” Carlos cumpriu as indicações. Quando entrou estranhou os cheiros. Em vez de desinfectante de wc cheirava a hambúrgueres que se transacionavam de forma discreta, trocando embrulhos pardos por notas. “são cinco euros o pacote” “como?” “um euro os 8 gramas” “depende da hora, à meia-noite são cinco” Carlos pagou os dois euros e ia a sair com os pacotes na mão. Um desconhecido colocou o pé na porta. Olhou-o nos olhos “olhe lá, está a ver se vamos todos presos?”. Percebeu, colocou o açúcar dentro do copo e antes de ter tempo de sair os pacotes vazios foram-lhe arrancados da mão e deitados no lixo.

Passou pelo amigo e propôs-lhe irem jantar à roulotte em frente. A oferta era, apenas, fruta, leite e água. Tinham ainda uns batidos para vegans. Carlos olhou o vendedor nos olhos. “cheira-me a febras não achas Filipe?” mantinha-se a olhar para o vendedor. “não me cheira a nada senhor” tudo o que vendo foi aprovado pela lei 42 do governo”. Viam-se gotas de suor a correr pela testa. A voz tremia ligeiramente. “não sou da policia, só queria mesmo jantar”. O homem baixou a voz “50 euros, uma bifana num pão caseiro, com mostarda mais 5 euros, o ketchup é grátis”. “50 euros???” “meu amigo, à meia-noite são 100”.

Ouviram-se gritos, dois polícias de cassetete em punho corriam atrás de um homem que carregava uma mochila. Do éter apareceu um carro da policia que se atravessou à frente do fugitivo. Conseguiram imobilizá-lo. O homem mantinha-se no chão a arfar. Um dos polícias abriu-lhe a mochila e despejou-a no chão. Gritos de nojo de quem passava. Viam-se bolos de arroz, queques e pastéis de nata. “um passador! Malandro, vais preso por 20 anos”. O segundo polícia espancava sem dó o homem no chão.

Carlos soube nesse momento que tinha de passar à clandestinidade.

08
Jan18

Canela

arp

O Director Geral das Novas Drogas Perigosas preparava-se para uma declaração pública através de conferência de imprensa. De compleição seca e de olhar dormente sobre um nariz avermelhado era pessoa com um curriculum importante nas instâncias internacionais já que tinha proposto e conseguido a liberalização de drogas como a canabis e a heroína. A sua guerra agora era outra: desmantelar o tráfico da canela. Logo após a proibição, pela União, conseguira uma séria de prisões importantes e fazia hoje parte dos noticiários de todas as principais cadeias europeias. Logo na primeira semana, numa operação planeada ao milímetro, detivera metade dos clientes do célebre traficante nos pastéis de Belém. Soube, por um informador, que o perigoso traficante punha, em segredo pó de canela nos bolos. O interrogatório, na cave do número 15 da Rua da Fé, durara horas. “Oh meu porco, porque é que andas a viciar os velhos na canela”. “Gostas de os ver naquele estado de sorriso imbecil sempre que trincam um dos teus bolos, Gostas?”
Depois, já com o apoio do exército entrava em casa das avós e confiscava os doces da abóbora com mais de um ano de casa. Estavam garantidamente impregnados da droga maldita. A imagem que mais o chocou foi ver em casa de uma idosa, na Beira Baixa, ela rodeada pelos seus 15 netos a quem dava, sem qualquer controlo, doce da abóbora com canela sobre requeijão! Ainda por cima de ovelha! Enviara a idosa para a cadeia e os netos para o Instituto da Reeducação. 
Os laboratórios demoravam em arranjar uma droga de substituição, assim como a metadona. O governo, através do Director Geral da Saúde aconselhava o uso de fígado de bacalhau ressequido. 
O problema, como com toda as drogas são os países que não aderem aos acordos. Os portugueses mais ricos viajavam para Marrocos, levando pastéis da nata congelados e doce de abóbora em vácuo. Os marroquinos haviam deixado de produzir haxixe agora que a canela era tão mais rentável. À custa de um perfumista francês haviam desenvolvido um aroma de canela que se vendia loucamente. Era a versão Patjouli dos anos 2014. 
Em vários países sub-sarianos o negócio mais antigo dos bordeis tinha tido uma deriva. Hoje já ninguém queria cachimbos de água. O grande atractivo eram os aromas a especiarias, em particular o da canela…
Em Hollywood foi realizado o segundo filme da saga “O justiceiro contra o caneleiro” protagonizado por um antigo governador.

07
Jan18

a viagem

arp

As viagens começam com um solavanco. Físico como quando o comboio arranca ou na alma, quando partimos na demanda de uma epifania. A nossa incapacidade para ver a estrela que temos ou queremos seguir atrasa-nos a partida. Outros há que se consideram livres porque incongruentes e partem, sem estrela nem procura, mas quem não procura também nunca encontra. Foi assim que aconteceu com ele. Entrou num comboiou numa tarde de outono ao som do apito do guarda-freio. Era domingo. O primeiro solavanco sentira-o em casa quando o sentido da vida que levava deixou de o fazer. A velha mala de cabedal castanho com duas correias foi preenchida com um conjunto de roupas para vários climas e estados de espírito. Deixara o canário com a porteira e dirigira-se à estação. Comprou bilhete para o primeiro internacional que apanhou por pouco. O bilhete era de primeira, mas na corrida entrou na porta de segunda que era a terceira, riu-se quando pensou nesta aritmética. A carruagem ia cheia. Ainda em pé olhou um casal saído de um quadro do Botero e que lhe tapou a passagem. A vida fora-lhes dura via-se pela dureza da pele e do olhar, mas compensadora no traje e nos adereços. Pensou se estariam a fazer um balanço dessa viagem de anos, nesta viagem de dias. Furou pela coxia vendo as pessoas que olhavam a paisagem sem se aperceberem que dia após dia contemplavam a metáfora de Sophia. Passou, depois, pelo vagão restaurante onde a variedade da oferta não chegava para alimentar a alma. Chegou por fim à “sua” carruagem. Estava cheia de espaços e de pouca gente. Sentou-se num banco no sentido da marcha. Considerava que quem se sentava nos bancos contrários tinha alma de caranguejo. Todos olhavam alguma coisa, o telefone, os sapatos comprados na véspera, o cinto da senhora magra, a maquilhagem excessiva da rapariga loira. Enquanto olhavam não viam os campos de vinhas e restolhos pintados por um Deus impressionista nem imaginavam a música além do ritmo sincopado das rodas nas juntas dos carris. Pensou nos cheiros do comboio como nas oitavas de um piano. Tinha entrado do lado piano e chegara agora ao forte. Olfativamente era a abertura 1812. Começou a trovejar, mas só aumentou o efeito cénico da paisagem do Deus impressionista. Era como se Cézane tivesse pintado a quatro mãos com Dali, ou talvez só Van Gogh. Abriu uma janela por onde entrou o cheiro a terra molhada e saiu o Chanel. Ninguém reagiu. Pensou que viajar era, no fundo, apenas um estado de espirito. Que um tetraplégico preso a uma cama viajava mais que toda esta gente. Cego é o que não está preparado para ver. Paraplégico é o que não percebe que pode andar. Sentiu-se liberto. O comboio estremeceu com o abrandamento. Ou seria a alma? Saiu na estação e esperou pelo comboio de regresso. Quando chegasse libertaria o canário.

07
Jan18

o jogo

arp

Ensinaram-lhe, logo em pequeno, as regras do jogo. Lembrava-se como se fosse hoje. Havia sido o avô, homem de outro tempo. Com calma e bonomia havia começado: olha menino, este jogo é muito antigo, começou a Índia. Conta-se uma lenda sobre o seu inventor, um matemático. O marajá ficou tão encantado que lhe disse para pedir um presente. O matemático pediu coisa pouca: um grão de trigo pela primeira casa do tabuleiro, dois pela segunda, 4 pela terceira, 16 pela quarta e assim sucessivamente. O rei achou coisa de pouca monta. Até que lhe disseram a dimensão do presente. Bom mas voltando ao jogo: joga-se num tabuleiro, com 64 casas. Brancas e pretas, onde se movimentam ao peças. Cada jogador tem 16 peças: 8 peões, os que só se podem movimentar para a frente, um passo de cada vez, são em maior número e vão sendo dispensados ou dispensáveis. Se conseguires chegar ao fim do tabuleiro com um peão, podes trocar esse peão noutra peça, por exemplo, numa segunda rainha. Depois as torres, os bispos, os cavalos, a rainha e finalmente o rei. O objectivo é “matar” ou comer o rei. Explicadas as regras, numa tarde de domingo, teve início o primeiro jogo. Era inverno e o jogo decorreu na sala. A lareira estava acesa e ouviam-se os estalidos do lume. No ar pairava o agradável aroma a lenha misturado com o do arroz de pato e do leite creme queimado. O avô sentou-se no seu velho cadeirão, de cabedal gretado. Puxou uma mesa, pequena, para a sua frente e colocou-lhe em cima o tabuleiro, de madeira, onde as casas não eram brancas e pretas, mas cremes e castanhas. Sobre este foi colocando, devagar as peças, também elas de madeira esculpida. Deu as brancas ao neto para que este o imitasse. Ainda se levantou para ligar uma aparelhagem de onde se começou a ouvir a abertura 1812 de Tchaikosvky, suavemente, quase em surdina. Acendeu um cigarro que lhe foi ficando esquecido na boca e lhe foi amarelando, mais um pouco, o bigode. Encheu um balão com uma aguardente bagaceira e incitou o neto a fazer o primeiro movimento. A coisa durou até aparecer a avó, fazendo gemer as tábuas corridas do corredor, horas depois, lembrando que havia um lanche na cozinha. Não teria sido preciso a nota já que, ao cheiro do tabaco e da lenha da lareira sobrepunha-se, agora, o cheiro a torradas e ao café. O jogo foi interrompido e só recomeçou na semana seguinte, mas o tabuleiro estava como o haviam deixado. Durante alguns anos este ritual de domingo à tarde manteve-se. Só alterava o local do jogo: no inverno na sala, à lareira, no verão no alpendre, com vista para a serra e com o som dos pássaros em vez da aparelhagem. Tudo era imutável: a mobília, as loiças, os quadros, o velho piano desafinado, a música, o lanche. Um dia,  o avô, foi chamado a participar num outro jogo. Algum tempo depois também a avó foi chamada e a casa foi fechada definitivamente. Pediu então ao pai que jogasse com ele. O pai acedeu, mas o jogo parecia outro. O tabuleiro era de plástico, como as peças. O pai estava sempre desconcentrado ouvindo a televisão. Começou a ganhar cada vez com mais facilidade. Os jogos eram mais rápidos. Jogados sobre a mesa da sala de jantar. Se por qualquer razão não acabavam o jogo tinha de arrumar as peças na caixa até ao domingo seguinte. Faltava o cheiro do cigarro e do arroz de pato. Durante algum tempo ainda houve cheiro a lenha, mas depois vieram os aquecedores eléctricos, a óleo, e acabou o cheiro. O pai não tinha, ainda, as rugas do pai dele. Nem os óculos na ponta do nariz. O ambiente também mudava. Os sofás, os cortinados, até a mesa. Nada parecia permanente. A cozinha era de um brando hospitalar e ao domingo não era usada. Ao domingo almoçava-se fora, em restaurantes barulhentos onde se comia frango de churrasco ou bife. Uma vez pediu arroz de pato. Depois da primeira garfada teve vontade de chorar. Não podia ser mais diferente do que a avó que fazia. Também a cozinha, não podia ser mais diferente da de madeira da avó. O pai havia aprendido a jogar de forma básica. Não conhecia a defesa siciliana, nem os gambitos. No primeiro jogo caiu num cheque pastor. Esforçava-se um pouco, mas não era como o avô. Não tinha a semana toda para pensar no jogo. Enquanto esperada pelas jogadas olhava para as paredes que iam mudando de cor, primeiro branco, depois verde, depois amarelo e depois branco de novo. Tinha saudades do imutável papel de ramagens verde água e do tecto amarelecido pelos cigarros do avô.

Os anos foram passando e começou a jogar também com os primos. Com estes não havia dia certo, nem tabuleiro certo, nem lugar certo. A dada altura um deles apareceu com uma caixa que era um tabuleiro portátil, onde as peças encaixavam através de uns pinos para não caírem nem saírem do seu lugar. Começou a haver apostas. As apostas passaram a ser mais importantes que o jogo em si.

Passou tempo e tornou-se apenas num observador. A nova geração jogava, mas as regras foram-se alterando. Começaram por acrescentar casas. O tabuleiro já não tinha 64 casas, mas 80, ou noventa ou as que fossem combinadas. As peças movimentavam-se a seu belo prazer. Os peões eram os que tinham ganho mais movimentos. Tanto podiam dar saltos de cavalo, como deslizar como um bispo. Depois deixou de haver cores: os peões passaram a ser todos cinzentos. Depois também as torres e os cavalos. Um pouco depois também os bispos e mesmo a rainha. Finalmente o rei também ficou cinzento. A alteração final permitia que os peões fossem comprados. O jogo passou a ser confuso, não se sabia quem estava de que lado. Os peões começaram a ganhar vida. De repente já não eram imagens, falavam uns com os outros, reuniam-se em segredo, fora do tabuleiro e decidiam quem ia ganhar e quem ia perder. Houve um jogo em que o rei cinzento 1 sofreu xeque de um dos seus peões. Em quase todos os jogos os bispos eram atirados para fora do tabuleiro. Assistia a estas transformações com espanto crescente. Apercebeu-se que já só se jogava por dinheiro, quem tivesse mais dinheiro tinha mais peões, quem tivesse mais peões ganhava o jogo. Quando as torres ou a rainha atingiam as casas opostas eram trocadas por peões. Foi depois proposto que o jogo não tivesse bispos tendo estes sido substituídos por peões. Durante algum tempo alguns jogadores conseguiram umas jogadas extraordinárias movimentando as rainhas e as torres. Nalguns casos as rainhas ganharam vida e lutavam intensamente, também as torres. Depois os julgadores das regras entenderam retirar também as rainhas e as torres ficando só peões e reis. Finalmente o supremo juízo entendeu suprimir também os reis. Do jogo original nada restou, mas apenas uma pequena minoria sabia as regras originais. Costumava ir assistir aos jogos. Foi começando a olhar à volta tentando reconhecer quem conheceria as regras. Eram breves trocas de olhares primeiro. Depois uns piscar de olho. Finalmente umas trocas de palavras. Organizou um primeiro jogo. Havia-se mudado para a casa que outrora fora do seu avô. O tabuleiro e as peças de madeira estavam sempre sobre a pequena mesa. A sala encheu-se para ver de novo o jogo. Ele perdeu a primeira partida, empatou a segunda e venceu as três seguintes. A notícia começou a correr. Jogadores começaram a procurar  os seus velhos tabuleiros. Ao fim de um ano já se jogava nos jardins e praças públicas. O supremo juízo decretou que esse jogo já não era válido, mas ninguém ligou. Nos jardins passaram-se a ver-se idosos a jogarem com crianças à sua volta que iam aprendendo as regras. Passou a haver dois tipos de pessoas: as das antigas regras e as outras. Com o tempo o número das primeiras foi aumentando e os das segundas diminuindo. A sua geração voltou a reter as tardes de domingo para jogos com os netos. As vidas de avós e netos passou a ser vivida em função dessas tardes. Os jogadores dos tabuleiros cinzentos faziam protestos, diziam que só os seus tabuleiros eram legítimos. Continuaram, enquanto foram vivos, a jogar o jogo das peças cinzentas. Os  juízes supremos foram sendo substituídos e começaram a admitir o velho jogo. Voltou a vender-se o velho jogo. Os peões começaram a definhar e a mudar de cor, uns para branco e outros para preto. Havia quem dissesse que tinham passado à clandestinidade.

07
Jan18

O circo

arp

Durante séculos o teatro era o lugar onde os mais dotados e mais cultos exerciam os seus dotes. Ser actor de teatro era o prémio de uma carreira sem mácula. Ninguém se candidatava ao lugar sem ter lido e, sobretudo, assimilado os clássicos. Não apenas os que fossem passíveis de serem interpretados, mas todos de molde a perceber a natureza humana que iriam interpretar. Da leitura de Platão e Aristóteles chegariam a Shakespeare e Ibsen, mas também às tertúlias onde a vida em geral era vista e escrutinada, onde se via depois de se ter olhado. Os mais dotados, passavam mesmo à fase de contemplação do que os primeiros só olhavam e os segundos já conseguiam ver. Estes actores tinham um séquito de seguidores que os defendiam ou vilipendiavam consonante eram os seus eleitos ou não. De qualquer forma havia sempre um respeito pela profissão que era sinónimo de entrega e seriedade.

Aquele momento de silencio que precedia a ovação, quando os actores esperavam, de olhos fechados e de coração descompassado a reacção do público pagava os longos anos de preparação. Se havia muitos teatros pequenos, grandes, contudo, havia poucos. Todos tinham o seu encenador, o seu director artístico e algumas
ocupações para quem não era tão dotado, como a venda de bilhetes e a limpeza do palco. A segunda escolha, para quem não passava na candidatura a actor, era ser ponto, onde a proximidade com as estrelas e o facto
de estar dentro do palco lhe permitia, na sua tertúlia tentar imitar o actor. Os espectadores saiam do teatro para os cafés e discutiam não só o realismo que os actores haviam transmitido às cenas (os cenários foram sendo secundarizados), como, sobretudo, a mensagem que a peça transmitia O circo, que tinha começado por ser um espectáculo que as elites haviam criado para satisfazer o povo, ou o próprio imperador, onde por vezes juntavam pão de molde a garantir a serenidade dos espectadores, mesmo após o espectáculo, tornou-se num
espectáculo sobretudo para crianças, com excelentes interpretes da emoção. A razão no circo não fazia sentido. Pretendia-se que os espectadores acelerassem o ritmo cardíaco quando os trapezistas se atiravam para o abismo ou quando o domador enfiava a cabeça dentro da boca do leão. A ninguém ocorria pensar se o leão tinha dentes, ou se a senhora que vendia pipocas nos intervalos não havia sido serrada ao meio no número da caixa. O que se esperava eram os risos das crianças após os momentos de máxima emoção que eram sempre seguidos pelos dos adultos que se reviam jovens e se deixavam enlear pela ilusão.
Os palhaços eram sempre e apenas dois. Um dito rico e outro dito pobre. A fortuna ou miséria ficava-se apenas nas diferenças das roupas que se pretendiam pouco subtis. As graças eram simples e eram acompanhadas sempre com a música de um instrumento que tocavam na perfeição. Acordeão, trompete ou,
para os menos dotados, viola. O nível do circo media-se pelos animais que apresentavam. Os mais simples umas cabrinhas e dois ou três rafeiros, os mais ricos leões e tigres. Contrariamente ao teatro, no circo, não havia momentos de silêncio. O som das crianças rindo ou chorando dava uma terceira dimensão ao espaço redondo de chão de pó. Nesse tempo a dimensão do decote da ajudante era sempre proporcional ao sucesso
do ilusionista. Um dia, após terem chumbado por várias vezes nas candidaturas a actores, os excluídos foram oferecer-se aos circos, mas primeiro criaram uma associação secreta onde acertariam as regras do jogo. Entraram de mansinho, que trabalhavam de graça, que começavam pela venda dos bilhetes e depois logo se via. As razões do chumbo na escola de actores percebeu-se mesmo nos circos. Tentaram colocá-los como trapezistas e foi um desastre, como domadores e os bichos morreram à fome. Só como palhaços se ajeitavam, mas mais por tropeçarem muito e caírem de forma aparatosa do que por tocarem algum instrumento o que não
acontecia. Andaram anos persistentemente nas suas pequenas ocupações até que os directores dos circos se foram reformando. Como, por falta de jeito, os excluídos do teatro se tinham mantido nas bilheteiras e lidavam bem com o dinheiro, coisa que quer no teatro, quer no circo, ninguém fazia e tinham já bons contactos com casas de crédito, pediram um empréstimo, que sabiam não conseguiriam pagar, e foram comprando os circos.
Assim que o primeiro dos excluídos chegou a director de um circo despediu logo os trapezistas e contratou, para substituir os dois trapezistas, quinze outros excluídos. A menina das pipocas ainda começou a dizer que não tinham treino, mas depois de ver os palhaços a serem despedidos calou-se. Pouco tempo depois dos elementos iniciais dos circos só restava mesmo a menina das pipocas. Mesmo os animais foram substituídos por excluídos vestidos com peles de leões e tigres. Só o número de palhaços aumentava loucamente.
Não havia circo que não tivesse pelo menos cem palhaços. Quando não havia público sentavam-se nas bancadas e imitavam crianças indisciplinadas. A baixa de qualidade dos espectáculos repercutiu-se no número de espectadores e as receitas caíram brutalmente não chegando para alimentar os muitos elementos que agora o circo tinha. Foram conversar com a casa de crédito que lhes disse para não se preocuparem que tratariam do problema. Havia saído uma lei que obrigava os teatros a fazerem obras. Quando os directores foram pedir crédito para as obras a casa de crédito recusou-se. Passado pouco tempo quase todos os teatros haviam fechado. 

Sem trabalho os actores foram-se oferecer aos circos. Os excluídos, com dívidas para pagar, ofereciam-lhes lugares nas bilheteiras, a limpar as jaulas ou a vender pipocas. Aos que se revoltavam ofereciam-lhe um lugar de trapezista, em especial se fossem gordos. Não os deixavam treinar, ocupando-os com outras tarefas e quando finalmente se estreavam estatelavam-se frente ao público. O público do circo hoje já não eram composto por crianças, mas por excluídos dos outros circos que em acordo assistiam aos espectáculos uns dos outros. Aqueles que haviam sido reis e generais mouros viam-se agora estatelados no chão com o público a rir de escárnio. Aos poucos foram abandonando os circos. Alguns houve que ainda tentaram vestir as peles dos leões e dos tigres, mas não os deixavam ser convincentes e também foram desistindo. Alguns, muito raros revoltaram-se e foram para a porta dos circos. Subiam para uma caixa de sabão e começavam a tentar contar o que se passava. Tinham estudado a retórica de Cícero e a lógica de Aristóteles, quando falavam as pessoas ouviam-nos. Os excluídos voltaram a pedir conselho à casa de crédito que arranjou logo solução. Parte dos
revoltados foram enviados para o grande circo, no estrangeiro, onde seriam regiamente pagos, aos restantes seria oferecido emprego às mulheres e filhos e filhas na organização circense. O público começou a protestar na rua, queria o teatro de volta e consideravam que o circo não tinha qualidade. Assustados os excluídos
criaram uns espectáculos ainda piores que por comparação faziam o circo parecer aceitável. Mas continuava a haver protestos. Aqui foi usada a associação que haviam criado e conjuntamente com a casa de crédito
compraram todos os jornais e tudo o que produzia notícias que lhes pudesse ser desfavorável. Deixavam sempre um ou dois pseudo críticos para dar um toque de realismo. Passaram então a uma solução de longo
prazo. Conseguiram que nas escolas deixassem de estudar os clássicos. A disciplina de filosofia foi substituída por quatro: elementos do pensamento circense, o trapézio como elevação, a cama elástica como modo de vida, a palhaçada como pensamento. Cada disciplina tinha quatro professores. Também alteraram a língua. Criaram uma nova língua, que aos actores fazia lembrar os tempos pósromanização. Veio, como seria de esperar uma grande crise de audiências (a assistência era já só composta por palhaços). Os excluídos
construíram teorias diversas para a crise, mas que se resumia a culpar os actores dos países vizinhos que continuavam a fazer teatro em vez de circo. O dinheiro faltou e os directores dos circos cortaram os ordenados aos trabalhadores excepto aos palhaços. Os edifícios dos teatros considerados desactualizados e foram demolidos. Os circos entretanto também tinham os panos rotos e as bancadas podres, mas ninguém investia. O dinheiro era apenas para os palhaços…

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