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Quem conta dois contos

Quem conta dois contos

25
Fev18

1124

arp

Corria o ano de 1216, passara um ano sobre o concílio que decorrera em Latrão e, constava, havia sido autorizada uma nova ordem, de pregadores. Zacarias, nome de profeta, menor, não tinha sido abençoado com o dom da palavra. Não tinha sido amaldiçoado, pensava ele quando estava só na sua cela. No sorteio das bênçãos, esse toque divino, incompreensível, que permitia que filhos de inaptos mostrassem toques de génio tocara-lhe a pintura. É certo que havia outras bênçãos, como ter nascido primogénito, o que também não fora o seu caso.

Havia mais de vinte anos, teria dezanove na altura, era agora velho, encerrara-se na abadia construída sobre o local de uma batalha. O rei, agradecido do que, sabia de fonte certa e garantida, havia sido a intervenção divina, que lhe permitira derrotar, um exército maior, mandara erigir um local de culto. Zacarias esperava que toda a beleza e calma neste conjunto harmónico da construção, da pintura e sobretudo os cânticos das vésperas, e das laudes que substituíra os gritos de dor, abençoasse o terreno onde fora derramado o sangue de umas centenas de homens decepados na fúria do embate. A natureza ignorara as agruras humanas e na primavera seguinte à refrega explodira numa profusão de cores dignas do paraíso. Também os animais haviam ocupado os campos e os céus sobre estes, cumprindo as regras da Criação. Os cheiros, a medo antes da batalha e pútrido depois, do espaço, também fora substituído pelo aroma das flores.

A construção levava mais de trinta anos. Começara pela igreja, de três naves, com cem passos de comprimento e trinta de largo e cruzeiro, com a capela-mor de topo redondo, em pedras aparelhadas, angulares seria dito vezes sem conta nos sermões. Os quatro vitrais, no tardoz do altar-mor, concluídos havia cinco anos, mostravam os quatro evangelistas, representados num reticulado de cores limitadas pelo chumbo. A cobertura, em arcos, apoiava sobre pilares topejados por capitéis onde se materializavam estranhas criaturas andróginas. A altura da nave, de cinquenta varas de altura, estava fora da escala humana, mas o local destinava-se a uma relação com o altíssimo. Mais próximo do céu. A igreja fora orientada a nascente os ofícios da manhã eram assim multicolores, como os campos condizendo com a polifonia dos cânticos.

Justaposto à igreja nascera posteriormente um claustro, de cinquenta passos, quadrado, com um poço no meio onde a água era fresca, mesmo no verão. Além destes as celas, de cinco côvados por três, com uma janela, pequena e alta, inacessível, por onde entrava uma luz escorrida, como a humidade nas paredes e um ar gélido nas invernias.

As paredes, da igreja, estavam agora a ser pintadas. As imagens tinham que dar o dramatismo à homilia, únicas palavras que os comuns percebiam da litania. Isso e o ite, missa est final.

O irmão responsável pela distribuição das cenas, propusera-lhe a cena de Marta, a ocupadíssima dona de casa que pedira a Cristo que libertasse a irmã, da escuta da sua palavra para ir tratar do jantar. Olhou a sua porção de parede, recém caiada, húmida, preparou, com uma faca, o carvão e desenhou o esquisso. Já tinha preparado os pigmentos. Começou a imaginar todo o conjunto. Uma construção com um telheiro adossado, por onde andaria Marta e onde se veriam os restantes personagens. Um pátio, com um poço junto ao qual se sentaria o Mestre. O elemento água teria de estar presente. Maria estaria também próxima. Conseguia com este efeito potenciar uma segunda leitura, da pintura. Além de Maria, no chão sentados, estariam várias crianças, com a sombra de Cristo sobrepondo-se. Sobre toda a cena voaria uma pomba. Os personagens, em segundo plano seria onze, dos quais dez estariam de frente e um de costas para o observador. Marta estaria carregando um tabuleiro com cinco peixes e dois pães.

Agora vinha a parte mais difícil. Precisava de tempo e que Deus o inspirasse. Poria uma Marta cheia de travessas com ar duro? Ou apenas sofrido? E Maria? Com expressão sonhadora e sorridente de quem escuta mas não ouve? Ou séria de quem recebe uma bênção que poderá não merecer? Podiam ambas ser belas? Ou isso distrairia os crentes? E se Marta estava tão ocupada quantos convivas poderiam estar na sua casa? Seriam só homens já que só pediu apoio de Maria. Era um princípio, só teria de desenhar as duas mulheres. E que muitas coisas poderia Marta fazer em simultâneo? Teria de dar movimento à cena, ou a parte dela.

 

Fez uma pausa, veio ao adro da igreja e contemplou a paisagem. Um vento quente vindo de sul agitava a copas das oliveiras no ondulado do vale. Por entre os afloramentos das rochas um rebanho de ovelhas pastava. Mais ao longe viam-se os campos de trigo de onde vinha o pão que se comia dia sim dia sim. O céu estava a mudar de cor para escuro. Zacarias via esta composição de Deus num completo silêncio, aliás tudo era muito silencioso, havia dez anos. Acordara um dia assim, num inverno frio e húmido, quase surdo. Depois vieram as maleitas dos ossos que hoje lhe tolhiam os movimentos e em muitos dias o impediam de pintar.

 

O cavaleiro, alto e magro, apareceu sem ruido montando um cavalo negro de combate. Vinha acompanhado por um escudeiro que montava um burro.

O escudeiro apresentou o amo:

- D. Sancho, cavaleiro do rei berrou o escudeiro.

- E vossemecê? Qual é o seu nome perguntou Zacarias

- Mas chamam-me Pixote, por não ser muito alto.

- Percebo, não sei porquê, mas parece-me estranho.

- O quê?

- Os nomes, mas não sei dizer-lhe porquê.

O escudeiro ajudou D. Sancho a apear-se e preparou-se para levar as montadas para o pasto.

- Anda ronceiro. Disse chamando a montada.

- Podeis dar-me pernoita, por hoje? Vou a Trancoso, ainda são 50 léguas.

- Que ides fazer tão longe D. Sancho, se me permites a pergunta?

- Ver a minha dama, a minha doce senhora

- Dulce? Perguntou Zacarias pondo a mão em concha no ouvido.

- Doce! que o nome é Brites, é padeira…

Fazendo sinal com a mão para que o seguissem dirigiu-se à cozinha onde três frades se afadigavam com o jantar. O chão de lajes de pedra tinha um pequeno canal por onde corria água. Na chaminé central, cónica, ardiam umas brasas e num espeto sobre estas rolava um animal que ia sendo fustigado com uma giesta que molhavam num tarro com um líquido escuro. Numa panela com pés fervilhava água com couves e castanhas. Num canto vários odres de grande dimensão adivinhavam o sumo já fermentado das uvas.

- Sede bem vindo, partilhareis a ceia connosco.

25
Fev18

peregrino

arp

Saíra só, a data não era festiva, movia-se apenas pela sua necessidade, inconfessável, de encontrar, ou de se encontrar. Pusera-se a caminho, como desde o princípio dos tempos, outros homens, o haviam feito em situação semelhante. Começara como muitos, pensando que ao atingir o local sagrado, porque o haveria de fazer em modo esforçado, atingiria a sabedoria, ou a calma, ou o nirvana, ou o que raio pensava que lhe faltava.

Roupa leve, apesar do frio, sapatos cómodos e velhos. Uma pequena mochila.

O caminho começava com uma descida, o dia estava ventoso pelo que caminhava quase sem esforço, com o vento pelas costas e acompanhado por um aroma a rosmaninho. Sentia como que um bafo de Deus a empurrá-lo. A vida, afinal, até que não era dura e a ajuda divina parecia torná-la ainda mais ligeira. Ou seria só uma parte dela. Seria a vida decomponível em camadas, seria dicotómica? Branco e preto, Bom e mau, Fome e fartura, pecado e santidade?

Ao fim de cerca de 1 km, uma parcela diminuta da viagem, a pendente inverteu-se, tal como o vento. Aquilo que parecera um passeio era agora um esforço que ameaçava tornar-se insuportável. Se calhar a vida era mesmo dicotómica. Maniqueísta. Mas será que não haveria gradações de cinzento? Tipo, pelo menos, branco sujo e cinzento antracite. Possivelmente as túnicas dos antigos peregrinos, brancas no início da caminhada e branco muito sujo no fim. Se bem que esta evolução da cor do traje fosse a antítese da evolução da alma no caminho. Pelo menos assim era suposto. Começou a sentir os pés. Esses terminais do corpo começaram a sentir-se. A dureza da vida sentia-a agora nos pés, mas tinha de seguir e, pior, regressar seria ainda mais penoso. O escape dos carros largava um fumo que lhe arranhava a garganta, mais uma nota, como na vida, as subidas custavam. Seriam as subidas profissionais ou também as morais, do espirito, da alma? Tipo sair do rés-do-chão da vida.

Olhou à volta tentando ignorar as dores, o cansaço, os campos estavam acinzentados. Apenas salpicado aqui ou ali por uns pingos de côr. Uns vermelhos e uns azuis.

As horas foram passando e com elas a claridade. Uma penumbra caiu sobre o caminho. Foi-se fechando até um breu cerrado. Era noite de lua nova e frio velho. Após algum tempo a vista habitua-se e conseguia ver à sua volta. Como na vida. A capacidade de habituação às negruras da vida é maior e mais rápida do que a da luta contra essas negruras. De tempo em tempo estrada iluminava-se, um ou dois faróis. Mais ou menos intensa. Mínimos ou máximos. Como aquelas pessoas que se atravessam na nossa vida. De forma efémera, por vezes rápida, demasiado rápida, mas irradiam luz, como os pirilampos. Ou uma viagem ou um concerto. Também há quem brilhe na escuridão por via da incidência dos outros, como se usassem um colete reflector.

Com a escuridão vêm os medos. A ausência de luz ou da luz, fazem vacilar as nossas convicções. Na segurança, por exemplo, mas também no futuro, seja ele mais próximo, literalmente ao virar da esquina, ou mais longínquo.

Sentiu sede e fome. Parou e pouco depois sentiu também frio. Entrou dentro de uma mata de pinheiros que emanava um aroma a resina. A caruma sob os pés fazia ruído ao ser pisada. No chão um pássaro morto junto a uma giesta florida. Uma vez mais a dicotomia. Comeu, enfiou-se dentro do saco cama, vestido e adormeceu de imediato. Como quando sentimos que a vida se interrompe.

Amar o próximo como a si mesmo. Mas e quem não gosta se si. No fundo com um só mandamento dá proposta para outra situação básica: há que gostar de si. Sem gostar de si não será possível amar o próximo.

Fez os restantes quilómetros por atalhos de paisagens inspiradoras. De patine outonal entre os castanhos, os verdes escuros e os vermelhos, o cheiro a terra e húmus intensificara-se com uma chuva miúda que começara a cair de madrugada e não parara. As várias descobertas feitas haviam-lhe tirado peso de cima. Quanto mais andava e mais reflectia, mais se distanciava da sua corporalidade. Já não sentia os pés doridos ou as pernas.

Montes e vales, chuva, sol, descidas e subidas.

Aprendeu a bolinar quando o vento estava pela frente. Bolinar a alma, reflectindo de forma alternada. No passado e no que esperava fosse o futuro. Como o podia criar.

O velocidade aumentou já que o tempo parara, mas continuava a avançar, um pé à frente do outro.

Sem que se apercebesse chegara ao santuário. Parou, respirou fundo. Agradeceu a iluminação naquele fim de tarde escuro.

Let the force be with you

25
Fev18

jornais

arp

Como sempre saía de casa cedo. Gostava do ar fresco da manhã, do frio mesmo. Da rotina matinal fazia parte uma paragem no quiosque. Situava-se numa esquina, como todas as esquinas deste mundo, perpassadas por pessoas apressadas a caminho do trabalho ou do que pensavam ser a sua vida. Na única abertura, num dos lados do octógono vidrado habitava o humor do senhor Pereira. O mau. Como as notícias que apregoava. Mortos e feridos, guerras e desgraças. Folheava alguns jornais e revistas e acabava por comprar sempre o mesmo.

O senhor Pereira, hoje, divagava sobre a existência de Deus, como Nietzsche, mas de forma menos poética. Assim falava Pereira.

As restantes sete faces do octógono tinham escarrapachadas nos vidros revistas e jornais amarelecidos pelo tempo. A guerra de Nagorno-Karabakh chegou ao fim alertava uma primeira página em letras tamanho 25 e num preto que, como a guerra também tinha chegado ao fim, havia muito, dando lugar a um cinza, como nos escombros sombrios da guerra. Uma mulher com um biquíni king size em pose com a legenda: “verão 1996” capeava uma revista feminina. Os vidros estavam sujos de pó, com a idade das revistas que mostravam e, como elas, parados no tempo. Num vidro estavam colados vários cartões com ofertas de serviços. O limpa-chaminés, que limpava rápida e eficientemente, dava a sua direita a Ravi, que alinhava os chakras, todos os sete de forma a repor a sua (nossa) energia e a esquerda a Fernando, desentupidor de esgotos. Por cima António, reparava estores. Finalmente o professor, de nome impronunciável que garantia soluções para todos os problemas, saúde ou dinheiro. Enfim todos prometiam a limpeza e reparação, da chaminé à alma, tudo se encontrava pespegado num vidro sujo.

Assim falava Pereira: se Deus existisse não haveria guerra, nem pobreza. É certo que as pessoas não faziam o que Deus manda, se fizessem…

A visão era a de um Deus dono de um circo que ira orientando os artistas. Quando não cumpriam as regras caiam do trapézio. No fundo não diferia das crenças supersticiosas, das cadeias que não podiam ser interrompidas sem que algo de grave acontecesse. A todos os que cumpriam era garantida a fortuna, tipo lotaria do natal, mas a muitos.

Deixou o senhor Pereira divagando para um casal que pensava ir comprar um jornal e acabava frequentando um seminário ou pelo menos uma palestra, hoje sobre teologia.

Cada manhã havia uma repetição, mas com variações dos temas. Esta rotina decorria havia mais de vinte anos. O senhor Pereira era o oráculo da Damaia. Tinha solução para quase todos os problemas que afectavam o mundo. Sorriu e foi também ao que pensava ser a sua vida.

25
Fev18

no tempo em que os animais falavam

arp

No tempo em que os animais falavam e se davam em casamento, havia uma burra, que perdera o pai cedo. Ficara muito mimada por ter sido criada só pela mãe. Esta, enquanto lhe mostrava os pastos verdejantes, contava-lhe histórias de tempos antigos em que rapazes eram amamentados por lobas e conseguiam fundar cidades e impérios ou em que toiros acasalavam com mulheres e se perdiam em intricados labirintos. A burra ouvia todas estas histórias e, na sua limitada imaginação, imaginou-se casando com uma águia. Quando foi à borda do lago beber, com a mãe, transmitiu-lhe a ideia de casar com a águia e ter um filho voador. A mãe, com a calma ternura materna disse-lhe que esse casamento já havia ocorrido e que o animal que havia nascido era imortal e único, por isso que se deixasse de ideias e fosse pastar. Mas a burra não desistiu. Imaginou-se com um corpo de sílfide e cabeça de burra (o contrário por razões entendíveis não lhe ocorreu). Uma vez mais a mãe, carinhosamente, lhe disse que já havia uma mistura dessas, de cabeça de elefante com corpo humano e só ocorrera porque o pai da criatura a decapitara. Então, a burra, vendo que a mãe não lhe dava saída para os seus sonhos seduziu um gato e fugiu com ele. Viveram felizes exactamente duas horas, logo que assumiram o compromisso nupcial a burra saltou, feliz, para o colo do seu amor…e ele esmagado pela força desse amor não resistiu. A burra cumpriu um luto pesado, de dois dias, e andava a passear, pesarosa, pelo prado quando viu um belo cão. Dirigiu-se-lhe e perguntou: queres casar com a burrinha, que é cinzenta e tontinha? E ou cão…

25
Fev18

pesadelo 2

arp

Era professora de inglês. Fora, pretérito mais que perfeito, que o presente, ou no presente mais que imperfeito era atravessadora mediterrânica numa barcaça assassina que partilha com mais outros duzentos de futuros duvidosos certamente imperfeitos e de pretéritos não verbalizáveis.

A longa fila, em que haviam atravessado as dunas lia-se como pontos de interrogação pela inclinação dos corpos e pela dúvida dos espíritos. Saíra da cidade subsariana onde fora professora sem saber exactamente como ou porquê, num momento estava no Chiado a discutir o Ser e o Nada no outro estava existindo num fim de mundo e logo depois atravessava um deserto azulada de tuaregue para esconder os tons da pele e do cabelo. A poucos quilómetros apanharam uns velhos camiões, Mercedes, de carga, com bancos corridos e com uma cobertura de lona que abanava fazendo um ruído que impedia as conversas enquanto subiam e desciam as dunas como se navegassem num mar encapelado, num som constante ronronante e tranquilizante.

Os ataques violentos às aldeias e cidades, os raptos o medo permanente pusera em fuga todo um povo. Cada um fugira para onde pudera e ela atracara-se a um grupo que debandara para o norte em direcção à Europa entendida como um Olimpo. Partiram carregados de esperança essa droga perigosa quando deviam ter levado água e comida. Andavam de noite para evitarem a canícula e os morteiros. Ao contrário da visão de Hitchcock os pássaros eram garantia de segurança. O chilrear matinal trazido pelo mistral certificavam-nos a ausência de tiros e de guerra.

Quando paravam, num oásis, já se ouviam vozes de conversas, curtas, mas já era um princípio. Chegaram à costa onde os esperava uma barcaça velha e ferrugenta com um motor fora de borda. Já fora vermelho, já vira fainas de sardinha, já tivera uns bancos. Hoje a realidade era outra. Sem cor sem bancos, sem sardinhas. Os pescadores de homens, mas que não eram Pedros, cobravam as entradas a bordo neste porto clandestino. Aceitavam todo o tipo de moeda aplicando uma cotação e uma taxa. Os homens vestiam agora os seus “kispos” comprados em boa hora no bazar. A brisa marítima destes primeiros alvores era áspera e no mar seria mais intensa. Ninguém reparara no azul intenso do mar que contrastava com o claro azul do céu, como não haviam reparado nos matizes de amarelo a quase vermelho das dunas produzidas por Deus para que tão intensamente Hogan traduzisse nos seus óleos.

Não tinha o dinheiro que os pescadores de homens pretendiam, mas conseguiu pagar a viagem com a promessa de tradução, de intérprete com o mundo primeiro, como se houvesse necessidade de traduzir a fome, ou a sede ou sobretudo o medo e o desespero.

Nada tem mais valor que uma promessa. Talvez seja isso que leva os eleitores a deixar-se enlear pelas promessas políticas como se de uma promessa de casamento se tratasse.

- shocran, shocran agradecera.

Zarparam quando o dinheiro se acabara na fila. Passado algum tempo deixaram de ver terra e seguiam crédulos a direcção que uma pequena bússola. Passada uma hora o intenso cheiro a medo só era abafado pela brisa do mar.

Do nada, do azul, literalmente, como dizem os americanos, surgiu um pequeno avião que começou a sobrevoar a barcaça enquanto um fotógrafo sugava pelas suas lentes as vidas como qualquer necrófago. Esperava, certamente mostrar estas imagens coadas através de um ecrã que seriam diluídas no mar de indiferença de quem as via.

- Come os cereais olha o que aqueles meninos gostariam destes cereais

- Oh Teresa, viste o meu telemóvel? O quê? Outra vez a mesma notícia? Não há meio de acabar esta fantochada?

- Tu vê é se mandas arranjar a torneira da cozinha que já não posso ouvir os pingos. Ouve o que te digo que é importante.

- Filho já sujaste outra vez a roupa!

Apercebeu-se que o encontro dicotómico, a preto e branco, estaria próximo. Era a única razão para terem avistado a avioneta. Por fim avistaram uma corveta da marinha. Todos os olhos cintilaram como se a luz da esperança lhes tivesse dado pilhas.

Todos sonhavam viver num local onde para matar só havia o tempo.

Sentiu que a atiravam pela borda do navio. Gritou. Ouviu o baque que o corpo, o seu, fez com a água. Era como se estivesse a ver e a não sentir.

Acordou transpirada. Não voltaria a comer picantes ao jantar.

25
Fev18

dia de eleições

arp

Sábado, estava frio, mas sêco, saiu de casa cedo e resolveu tomar um pequeno-almoço na esplanada da avenida. Tinha um quiosque em frente onde podia comprar um jornal e, supremo luxo, um engraxador. Como sabemos um engraxador além de saber engraxar sapatos, usando a graxa e os unguentos certos em combinação com o ritmo da escova e do pano, tem de ser um filósofo. Se a cidade fosse mais pequena, para ter clientes bastar-lhe-ia estar actualizado com as cosquvilhices, como se fosse a D. Deolinda, mas numa grande cidade os temas a abordar tinham de ser mais abrangentes, teria de, por exemplo, tecer considerações sobre a urbe, como se comentasse o jardim do éden ou Campanela e o seu Sol na cidade. De um engraxador (como o termo foi utilizado ao longo dos tempos…) espera-se que tenha uma forte inteligência emocional que lhe permita ler, nas solas dos sapatos, novas ou rotas, se o seu caminhante está pronto para debater as teorias urbanísticas com o filósofo sentado ou se, pelo contrário, prefere falar da corrupção.

G. começou pela compra do jornal onde foi brindado com um “já viu o que aí vem?”. O banqueiro, de jornais entenda-se, oferecia aos clientes um toque de crise mesmo que o dia fosse de natal. O seu passado movimentado de ardina deixara-lhe a cabeça com uma pendência derivada ao grande saco, de pano azul, com uma só alça, onde transportava os diários, populares e de lisboa fizesse chuva ou sol “olhó diário populárió”. Não mudara de vida, nem de perfume já que da banca emanava o odor do papel tintado. Um cheiro constante, quer a notícia fosse do novo perfume quer fosse do encerramento de uma lixeira. Hoje às folhas já não se permitia usos menos nobres como enrolar robalos ou pescadas, espera-se que sejam recicladas e que o mesmo papel que ontem vendia um político, homem, hoje explique que afinal não era um homem político, mas uma deriva de Ícaro que subira e ardera.

A esplanada tinha cópias das antigas cadeiras de chapa com costas redondas de folha e braços igualmente redondos de tubo redondo, tudo pintado, ou despintado em bege, com o assento em ripas de madeira escura de mogno. As cadeiras casavam com mesas redondas, igualmente despintadas, de folha, que facilitavam a acústica aos talheres – ping.

G. mandou vir um café com leite – não, não é meia de leite, que quero mais de metade de café - e uma bola de Berlin, com creme. O aroma amargo do café quente misturava-se na proporção certa com o doce do bolo, como se tivesse sido misturada água quente e fria numa torneira.

Contemplou os passantes através do insipiente nevoeiro criado pelo centro de baixas pressões locais que era a chávena do café com leite.

A montra do café-esplanada possuía um vidro, semi-espelhado, que atraía os olhares dos passantes. Muitos não resistiam a compor a pose. Com o sol coado pela copa, agora acastanhada, do plátano que ainda não se despira, um raio de luz iluminava o quadro. Contudo os personagens eram mais dignos de Velasquez que de Rembrandt.

Ignorou o jornal que comprara e divertiu-se a ler as almas que passavam fugazmente. Aliás as notícias seriam certamente as esperadas. Todas as que o editor, pensasse que iria, ainda, influenciar os eleitores e assim a primeira página: “esperam-se manifestações de descontentamento (segue na página 4)” depois na página 4 via-se que o assunto era a Coreia do Sul, “o governo não deixará subir as pensões” (segue na página 21) na página 21 o tema era afinal a “subida” das pensões de três estrelas a hotéis de duas.

Um homem, de sessenta anos, ou perto, tirou um jornal e entregou uma nota ao jornaleiro, que lhe deu o troco com uma das suas tiradas, inaudível para G., mas certamente incompreensível para o comprador. O homem encolheu os ombros elevando o sobretudo bege. Virou costas ao jornaleiro e olhou o céu, numa prece muda ao deus da loucura.

Outro homem de cinquenta anos passou, olhando o espelho. Estava, via-se, contente com a imagem que criara. Vestira-se aprimoradamente, roupa justa do tipo que só serve a quem passa fome e cumpre horas penitenciais de ginásio em grande expiação. Vivia bem com a imagem, mas mal com a idade, via-se. Com uma dobra nas pernas das calças que lhe mostravam as canelas, sapatos longilíneos, pulseira e anel “moderno”. Tentava roubar anos à vida pensando, ingénuo que a enganava.

Passou uma mulher de, aparente, rara beleza. Aparente porque passou rápida, e sendo a beleza efémera, por definição, nos segundos desta passagem não se viam defeitos. Teria mais de um metro e setenta, ou seria oitenta? Vestia um casaco de lã amarelo ocre, ou seria castanho? e uns cabelos castanhos que enquadravam um rosto oval com uns intensos olhos verdes, ou seriam azuis? O mistério dessa beleza ficaria para a eternidade dos próximos trinta segundos no lobo temporal dos passantes. Sim, que a vida não é um filme e ninguém correu atrás da dita com um ramo de miosótis e uma deixa misto de humor e charme.

Uma mulher de fato saia e casaco espinhado, nos setenta, com o olhar vazio e o cabelo em desalinho apareceu vinda de não saberia onde. Olhava sem propriamente ver deslocando-se lentamente. Vários dos personagens da envolvente ficaram parados olhando-a. Esperavam em silêncio pelo próximo acto. Se fosse uma cena de cinema no enquadramento da câmara apareceria uma mão, depois um braço, que segurariam a senhora pelo ombro. Mas os filmes copiam a realidade e também aqui apareceu a mão e o braço pertencentes a um septuagenário, que com umas rugas de preocupação na testa, sobrepostas a uns óculos de massa graduados chamou baixo “Rosa, fugiste de novo”bebeu um gole final do café com leite, mas engasgou-se. Andando em sua direcção vinha um homem, com uma careca complexada já que só possuindo cabelos no tardoz da cabeça, usava-os compridos abaixo do pescoço. Trazia uns óculos de meia-lua na ponta do nariz e um livro na mão direita, suportados por um braço esticado ao nível dos olhos, era um personagem idealizado por Fellini. Ignorou o espelho. A personagem que encarnara era para ser visto e a e não para ver. Espanejava o livro como um pavão a sua cauda. A falta de umas pedras na calçada fizeram-no tropeçar, mas conseguiu manter a compostura, simulando uma mudança de página.

O dia ia subindo de tom e foi trazendo apetrechos ao bairro, o fim da manhã trouxe o vendedor de castanhas garantia outonal maior que a previsão meteorológica, como o som do amolador garantia uma semana chuvosa.

A cidade compõe-se destes sons e destes cheiros, não é só dos prédios e das buzinas vaticinou o filósofo para o novo cliente. Eram os sons e os cheiros da cidade.

G. levantou-se.

25
Fev18

fotografo

arp

Entrou na garagem que lhe servia de estúdio havia anos. Tinha colocado um cortinado de flanela preta encostado ao portão para travar a passagem da luz quando revelava. Apesar da tecnologia disponível não conseguia livrar-se do modo artesanal de produzir fotografias.

A vida tinha os seus tempos. Os dias, as estações do ano. Tudo tinha os seus tempos. A fotografia também. A vida também tinha sons e cheiros. Como num estúdio, mesmo improvisado. Os cheiros dos reagentes, ou dos cigarros das esperas. Do perfume das clientes. Do papel seco na esmaltadeira para lhe dar brilho. Hoje era tudo virtual, mesmo na vida muito era virtual. Os relacionamentos, os sentimentos.

Nascera noutro tempo. Numa época em que havia tempo. Hoje era como se a fábrica do tempo tivesse entrado em greve. Quando começara a tirar retratos as pessoas ainda frequentavam os cafés enquanto faziam tempo para irem trabalhar, ou a um concerto.

Nunca cedera a facilitismos como lhe chamava. Ainda usava a velha Nikon F e as mesmas três objectivas. Não possuía nenhuma zoom. Zoom? Zoom eram as pernas costumava dizer a quem lhe tentava impingir tecnologia.  

Para conseguir uma boa fotografia, um bom retrato como gostava de dizer, havia que captar a imagem, mas mais que isso: a essência do lugar, da pessoa, do tempo. A raiva do guerreiro num conflito ou o dissonante casal sem idade abraçado enquanto passava uma manifestação. Ou o homem em roupão, na varanda, de cabelo desgrenhado numa fachada geométrica e irrepreensível.

 Depois, bem depois começava pela extracção do rolo do seu invólucro, na escuridão total, como um cego, manipulando, encaixando o negativo no depósito. Havia que treinar.

Mas a verdadeira ciência estava no uso do ampliador, na escolha do tamanho e do enquadramento. No toque de magia que podia ser dado soprando o fumo do cigarro no feixe de luz para criar “um clima” ou no segundo enquadramento.

O olhar do fotógrafo era recriado, como aquele que transformara um tipo gordo e barbudo, num herói romântico ou o contrário. Um herói despromovido a incógnito barbudo.

O despontar, lento, do produto final no banho revelador. Era o momento de descobrir se conseguira captar uma alma como diziam os índios que não se deixavam fotografar. Por vezes era o contrário. A maioria das vezes. O olhar do fotografado ou mais frequentemente da fotografada é que lhe captavam a alma. Aprisionavam-na mesmo. Uns olhos, melhor, um olhar despejado sobre a câmara.

Por vezes só neste momento, literalmente revelador, se apercebia que estava desfocada. Errara na escolha da velocidade, o “objecto” movera-se. Ele movera-se. A terra movera-se. Podia haver poesia numa fotografia desfocada. Como quando queria transmitir o vento, ou o ritmo daquele casal que dançava tango na rua de Buenos Aires.

Captara o frio de ser capturado por beduínos no Saara e o calor numa vivência familiar num iglo. A inocência na idade avançada e a malícia na infância. O reflexo do castelo no lago e do terror nos olhos de quem sobreviveu a um terramoto. Até captara o som, ou melhor a música no cortejo com a banda. E a cor da noite num filme a preto e branco.

Hoje ia fechar o estúdio. As revistas que recebiam os seus trabalhos exigiram que trabalhasse em digital. Decidira reformar-se….

25
Fev18

o quadro

arp

Corria o ano da Graça de 1502, o jovem Ludovico, com uma penugem em lugar de bigode, olhos verdes e cabelo encrespado, entrara, como aprendiz, para o atelier de mestre Filippo. No centro da cidade, a poucos metros da Piazza della Signoria e da porta que se não era do paraíso, parecia. Trabalhava havia três anos. Começara aos dezasseis, a lavar os pincéis, a esticar as telas e a colocar as brasas na salamandra, para manter a aragem intrometida pelas frinchas da porta e das janelas, menos fria para os artífices e para os modelos. Por muito que lavasse os pincéis o odor dos óleos e da terebintina eram omnipresentes. Com o passar do tempo já achava que o cheiro fazia parte da sua anatomia, como o nariz que o sentia. Passado mais algum tempo achou que até conseguia distinguir as cores pelo cheiro. O ocre era mais acidulado e o rosa mais doce, se pálido era quase perfumado. Si non e vero e bem trouvato disserra-lhe mestre Filippo homem de barba farta e de larga boina sobre a testa para cobrir a falta de cabelo.

Passara todo um enorme ano até lhe ter sido autorizado a usar o carvão para riscar. Começara por formas muito simples que depois o mestre corrigia. Passado um outro ano de esforço já traçava o ondulado dos corpos com uma única passagem do carvão. A magia das cores veio depois, começou misturando os pigmentos essenciais com óleo de linhaça até ter a consistência que o mestre aprovasse. Depois foi misturando.

A luz vinha do tecto, coisa rara, para não dizer única, coada através de uma clarabóia suja, que nos dias de Outono deixava passar uns pilares de luz que incidiam sobre o modelo criando zonas de sombra e luz que os aprendizes corriam a tentar reproduzir. A clarabóia corria todo o tecto da sala de 136 palmos ou vinte e sete varas, por apenas quatro varas de largo. O chão, em terra, muito batida e misturada com anos de pigmentos pingados das paletas, dos pincéis e das aspirantes almas de artistas.

As encomendas vinham ou da igreja, sua excelência, o bispo era um amigo da casa, ou de duas famílias abastadas.

  1. Giacomo, homem com um rendimento de 5000 libras e uma despesa de três mulheres, encomendou o retrato da mulher, D. Lenore, a legitima esposa, para decorar o palazzo que entretanto restaurara. D. Lenore pousou por uma semana para o mestre. Chegava pela hora do meio dia, logo após o almoço. Vinha na carruagem do marido conduzida pelo cocheiro zarolho que herdara do pai. Mestre Filippo, desenhou e pintou D. Lenore tal como todos a viam. Demasiado redonda, de olhos mortiços, com um duplo queixo, proeminente como o ventre aliás. A similitude na reprodução levou a que fosse incluída a verruga que pontuava o nariz já de si enorme.

Quando a dona do corpo e da verruga olhou para o retrato torceu o nariz e bufando de raiva disse com estridência ao mestre que se conhecia bem e que não era ela que estava ali representada.

As encomendas da casa sustentavam o atelier metade do ano pelo que, diplomático, mestre Filippo disse que ia corrigir o retrato de memória. Lembrava-se de D. Lenore do ano em que se casara e iria reproduzir essa memória.

Após a saída de D. Lenore, mestre saiu porta fora. Voltou passado uma hora com uma mulher vestida pobremente, com a cara quase invisível por um lenço que a cobria. Entrou a medo. Mestre apontou-lhe o banco sobre o estrado onde se sentou e começou a tirar a roupa, o lenço da cabeça castanho, um xaile que já fora tricolor, mas que hoje era cinzento e que lhe tapava os ombros e um casaco cinzento em lã grossa. A sala estava quente das braseiras e da salamandra. Retirados os lenços, o xaile e o casaco, apareceu uma beleza de olhos avelã e cabelo quase ruivo que caía em canudos até aos ombros, deliciosamente torneados. Das mangas saiam umas mãos esguias e delicadas. A cara levemente ruborizada pelo frio que apanhara na rua e agora pelo calor das brasas era suave. Os olhos eram grande e tristes, visíveis através de umas pestanas desproporcionais que afinavam com umas sobrancelhas quase invisíveis de ruiva. As inevitáveis sardas davam um toque de exotismo que a tornavam totalmente irresistível. Os aprendizes tiveram que levar com uma cana na cabeça, manipulada com arte e precisão, para acordarem do transe

A pintura durou dois dias. Na tela transpareceu a beleza etérea do modelo. Era indubitavelmente o melhor quadro do mestre. As manchas de fuligem da cara foram limpas, na tela, e fora vestida com os melhores panos e brocados. O toque final foram uns brincos de rubis rodeados de diamantes e uma gargantilha condizente, retirados da tela de D. Lenore. A pintura foi feita sobre a anterior aproveitando a tela e o contexto.

Ao terceiro dia veio o casal ver a tela. D. Lenore ficou encantada. Extasiada mesmo. Como o mestre se lembrava dela. Sim era mesmo assim. Passaram uns anos, mas captara-lhe a essência. Ordenou ao marido que lhe pagasse em dobro já que tivera que trabalhar certamente até tarde para acabar o trabalho.

- Oiçam! Esta manhã tiveram a melhor aula de pintura que vos podia dar. E que foi?

- a mistura das cores para criar o tom da pele.

- Não! Berrou

- A escala do quadro, uma vez o tamanho real e a prespectiva…

- Não!!! Berrou ainda mais alto. Tu diz-me!

- Mestre o que pintou não foi a realidade, nem perto…

- Exactamente! Pintei o que as pessoa viam ou queriam ver. O espelho mágico que todos gostariam de ter, onde o reflexo não traduz a realidade, mas o que pretendemos dessa realidade. Um reflexo que é muito mais belo que a realidade. Eu faço o que as pessoas só pensam: cubro a fealdade dos corpos e das almas, converto pecadoras em beatas, cavaleiros em mendigos. Brisas em dias escaldantes.

Mestre Fillipo, um exímio manipulador, usava frequentemente sobreposições e subtilezas. Num quadro que pintara para Santa Croce, mas que ficara na casa do pároco, pintara, interpretara, o céu, o purgatório e o inferno. Fizera alguma mistura de feições criando uns seres híbridos. As representações do céu e do inferno eram clássicas. Para o purgatório escolheu um campo de trigo já ceifado, sobre um rio sem ponte. Os vários personagens olhavam o outro lado do rio onde despontavam flores e uns veados, a quem foi dado uma expressão quase humana. Quando o quadro foi exposto pela primeira e única vez só o pároco se viu representado no purgatório. Todos os restantes disseram ver-se no céu e sentir-se no inferno, ou teria sido o contrário?

 

25
Fev18

a epidemia

arp

 

A epidemia

Por razões que só Deus saberia, mas que se prendiam, vagamente, com o facto de não ter pago a conta da electricidade, acordara sem televisão, sem rádio e sem telefone ou mesmo sem telemóvel já que não tinha havido energia para o carregar. No processo de acordar não houve interferências electrónicas, como o zumbido do telemóvel, ou mesmo o rádio emitindo um fado. Durante a primeira hora sentiu-lhe a falta de uma forma quase física, como se lhe tivessem tirado a cocaína e estivesse numa crise de abstinência. Sentia a falta de ter o telefone na mão, como quem deixa de fumar. Saíra assim de casa, numa manhã de outono, soalheira e multicolor. O chão estava atapetado em castanho e amarelo das folhas dos plátanos e dos castanheiros provocando um som característico de cre cre sob os sapatos mal engraxados. Espantou-se com esta realidade que, poderia garantir, ontem não estava presente. Todas aquelas folhas deveriam ter caído durante a noite. Foi assim andando até à paragem do autocarro, pressionando o tapete folhoso de formas diversas para conseguir sons também diversos. Nessa caminhada, sentindo a brisa levantar-lhe o cabelo como se de uma carícia se tratasse, foi-se cruzando ou seguindo outras pessoas. Estranhamente achou que não o viam. Era como se tivesse um manto de invisibilidade qual Merlim dos tempos modernos. Passavam por ele olhando apenas para as teclas dos telemóveis que batiam insistentemente. Ao cruzar-se com um tipo forte resolveu não se desviar. Bateram os ombros, mas o desconhecido de tão absorto não sentiu a pancada e seguiu o seu caminho. Na paragem do autocarro viu várias pessoas e leu-lhes o estado de espirito em função da velocidade e força com que matraqueavam as teclas do apetrecho. Viu uma mulher, jovem e bela, de cabelos loiros e curtos, com uns olhos castanhos semicerrados que “teclava” com os maxilares apertados. Via-se o esforço e a tensão nas saliências da face e na contractura dos ombros. Um homem de meia-idade, calvo, sorria olhando o telefone devia estar a manter um diálogo com uma conquista.

Toda a gente estava a viver o tempo presente num espaço futuro ou, no mínimo deslocalizado. Todos viviam uma realidade que o não era.

Tocou no braço da loira, mas não obteve resposta. Ninguém falava. Ouviam-se o som dos carros que passavam na rua e na sua intermitência do grasnido das gaivotas prevendo temporal.

Entrou no autocarro e sentou-se num lugar vazio. As janelas estavam abertas, alguns minutos depois sentiu um cheiro pestilento vindo da rua. Reparou que o lixo se acumulava no chão dos passeios e lembrou-se da notícias de uma greve na recolha. Retirou o lenço do bolso e tapou o nariz. Aparentemente os restantes passageiros tinham perdido do olfato.

O autocarro passou frente ao hospital psiquiátrico. Os doentes que deambulavam pelas passadeiras ou estavam parados nos semáforos pedindo cigarros, ou dinheiro para eles, desprovidos de telemóvel, de olhar perdido olhavam quem passava e franziam o nariz, desagradados com o cheiro que marinava no ar.

Por cima do ombro do vizinho de banco leu a frase escrita no monitor: “em risco de extinção um pássaro na amazónia”. O vizinho apressou-se a responder: “bora fazer uma petição, keres ajuda?”

Em todo o autocarro apenas ele e intermitentemente o motorista não estavam agarrados a um telemóvel.

Via-se quem tinha um novo. Olhava-o com o embevecimento bovino de quem olha para uma nova amante. Como outros homens, noutros tempos, também contavam as proezas que faziam com as suas amantes. Olhavam para o lado comparando o seu com o do outro e o diálogo era condizente, ouviu a conversa de dois vizinhos de banco: já tens o telemóvel x45? Não? Não me digas que ainda escreves no 44? Este ano já comprei três, o x42, o x43 e o x44.

Outro jovem meteu-se na conversa: “ já viu a autonomia do novo 46?”

Saiu do autocarro e no chão da paragem estava uma criança subnutrida com uns enormes olhos negros abertos em súplica silenciosa e com a mão direita vazia estendida, os clientes passavam ignorando-o.

Na montra de uma loja de telemóveis os écrans virados para o exterior davam a notícia de um escritor que havia ganho o nobel da literatura com um romance longo de três páginas.

Foi andando a pé pelo passeio sujo de papéis, beatas e latas de bebidas. Viu um infantário onde todas as crianças estavam sentadas no recreio olhando o seu telemóvel, tal como as educadoras.

Chegou à estação de comboios, embarcou no rápido da linha 2. Ouviu-se o assobio do guarda freios a composição estremeceu e arrancou. Abriu a janela para sentir o fresco e com ele entrou o aroma a flores e terra. O dia continuava soalheiro e multicolor, a harmonia das cores inspiraria pintores e escritores se houvesse quem quisesse usar os pincéis e as aguarelas ou os óleos ou uma caneta e um papel. Mas não havia, o efeito de contágio propagara-se globalmente e já ninguém se conseguia interessar pela realidade visível, próxima, palpável. Só era real o que passava pelos telemóveis. Mesmo a fotografia, como arte, desaparecera. Reparou que os “fotógrafos” só se fotografavam a si mesmos ou ao seu ego. Os jornais, haviam sido reduzidos para uma dimensão liliputiana, de bolso, não fora os receptores das notícias andarem sempre na mão e as “notícias” serem apenas as que podiam ser transmitidas em quarenta carateres a sua veracidade era irrelevante.

Ouviu então um som agudo, que lhe chegava ao cérebro abriu os olhos e viu que era o seu telemóvel que o acordava. Estivera a sonhar. Tivera um pesadelo, daqueles intensos, felizmente já passara. Pegou no telemóvel e viu as notícias do dia: fora apresentado o novo Pear 7, com maior autonomia e menor consumo. O Xp 8 fora declarado obsoleto. Fora dada a injecção letal ao homem que roubara o telemóvel do presidente. Levantou-se e foi fazer a barba com o telemóvel…

25
Fev18

o processo

arp

Victor Vasilovitch estivera preso. Passara cinco anos no Facebook por andar na rua a distribuir propaganda anti regime e por olhar o pôr-do-sol. O julgamento fora sumário. Numa sala cheirando a repartição e a medo, um juiz, duas testemunhas que nunca vira antes nem veria depois, dois guardas armados com excesso de peso e falta de zelo. Leitura monocórdica do crime e da sentença. O juiz pontuava cada frase com um estalido da boca, ao jeito de ponto final. Os pontos de exclamação eram sonorizados com um bater da língua nos dentes, pelo menos assim achava Victor. Ao pedido de identificação anunciara-se como Josef K. O juiz levantara os olhos para ele, franzira o nariz ao guarda e Victor levara um murro nos rins. O humor não era bem vindo e a hipótese de um julgamento longo e complexo, eterno, subjacente à piada também não. Os comentários, perguntas sem resposta e outros versículos eram feitos com o olhar em frente, fixando a parede do fundo da sala de audiências onde não estava ninguém real. A sentença fora proferida em inglês para garantir a seriedade internacional do acto. Após o bater do martelo foi levado pelos guardas.

A travessia da estepe, num hifive, como um comboio mal aquecido, pior ventilado, durou dois anos. Foi sorrindo às poucas crianças que usavam este meio de transporte. Não sendo cristão achou que havia semelhança com a descrição do antigo testamento da arca de Noé. Aqui se transportavam seres pouco humanos de todo o tipo e que partilhavam este comboio virado arca. No fundo, navegava sobre uma estepe branca e infinita, como uma fuga a um dilúvio anunciado.. Foi registado no campo do Facebook com o número @675 F. Após os formalismos rápidos e simples foi conduzido, empurrado, até a uma caserna onde estavam cinquenta. Às casernas, aqui, chamavam grupos.

As prisões e campos para delitos de opinião sempre foram sítios onde a liberdade de expressão era total. Assim foram os Gulags por exemplo. O facebook não foge à regra. Os detidos neste campo podiam dizer tudo, criticar o regime, os regimes, até os alimentares se quisessem enquanto tinham a ilusão de liberdade. O sistema idealizado pelo Grande Irmão, hoje dominado pelo Grande Primo era perfeito. Os membros do Partido do Grande Irmão - PGI sabiam que nada prende mais que a ilusão da liberdade. Havia até Fomentadores do Protesto que na terminologia do PGI eram os FP. Como constava da nota interna, secreta, oriunda do órgão de cúpula do PGI, o “Encarregado”: todos os FP deviam garantir o inconseguimento da libertação facebookiana dos cidadãos. Os FP deviam frequentar os poucos cafés que resistiam e aí passar os dias garantindo a futura falência dos mesmos e ouvindo os rumores. Sempre que ouvissem vozes a propor manifestações em ruas ou, sobretudo, em praças deveriam garantir o seu inconseguimento. Sobre o sagrado também deveriam ser promovidos novos deuses. A promoção dos novos deuses seria da responsabilidade dos Fomentadores de Ilusões. Importava que os cidadãos tivessem a percepção que quanto maior a ilusão, maior o custo. E quanto maior o custo maior a inveja dos inconseguidos.

Victor cumpriu os 5 anos da pena. Na íntegra. À saída, do Facebook, não teve ninguém a esperá-lo. O guarda riu-se dele: “olha já cá temos mil milhões. Vais voltar, vais ver que não encontras ninguém aí fora”. Tentou forçar-se a ver uma lógica positiva nesta demência. Correu todo o exterior do Facebook. Apercebeu-se que os seus amigos estavam todos presos.

Passou numa livraria, comprou o Rinoceronte e sentou-se numa esplanada a ler.

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