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Quem conta dois contos

Quem conta dois contos

31
Mar18

A viagem 2

arp

Amanda Miles, nome inspirador para quem tanto queria viajar, chegara a sexagenária sempre preocupada em não envelhecer. Começara por enganar o espelho. Fizera uma plástica, duas mas ninguém soubera da segunda que lhe tirara os pés de galinha. Tinha uma pele esticada e bronzeada, uns olhos cristalinos. Uma figura esguia e elegante. Praticava o ginásio como uma verdadeira devota. Dormia exactamente sete horas e trinta minutos. Iniciara uma dieta orgânica vegan que, garantiram-lhe, lhe retiraria mais cinco anos de cima. Vestia-se sempre como se tivesse menos dez anos, calçando umas sapatinhas para dar um ar leve e jovem, calças que lhe marcassem a silhueta e maquilhagem. A realidade porém era outra, sentia os anos. Sentia-os como se lhe tivesse colocado um alforge às costas. É certo que ainda fazia 60 minutos de bicicleta fixa na mudança alta e nadava pelo menos 30 minutos em bom ritmo, mas não era o mesmo que quando tinha 20 anos. Gostava de viajar, mas o que gostaria mesmo era de poder viajar no tempo. Meter-se num avião, rápido, tão rápido que voando circundando a terra em sentido anti horário lhe tirasse um ano por cada volta. Queria ter 30 de novo. Bastariam 30 voltas.

Um dia, no escaparate das revistas da esplanada onde bebera um batido de couves, uma notícia – um cientista, da NASA inventara uma máquina de viajar no tempo. Descobrira um atalho no enrugamento do tempo e do espaço. Conseguia recuar nessa frincha. Uma frincha que correspondia exactamente a 30 anos, seis meses e dois dias. O assunto era exposto nesse mesmo dia num hotel perto.

Sem pensar, caminhou, aparentemente sem rumo, para norte, com o sol nas costas. Cinco minutos depois estava sentada numa sala repleta de gente a ouvir o orador. Um homem novo, calvo e com peso a mais. O discurso foi demasiado técnico. Passados 10 minutos todos os curiosos tinham abandonado a sala, mas ela ficou com umas duas dúzias de físicos. A conferência durou mais de duas horas. No final o orador fez uma pergunta perceptível: se algum dos presentes queria experimentar a sua descoberta. Todos os presentes tinham no máximo 35 anos pelo que todos se riram.

Amanda pôs a mão no ar e ofereceu-se. Os momentos seguintes foram uma correria de testes médicos. Foi dada como apta para a viagem. A viagem de uma vida. Assim, foi levada até um laboratório, nos arrabaldes de Houston com cheiro a borracha e a um cheiro indistinto que, percebeu, era das soldaduras. Deu por si enfiada numa capsula, ajustando o blazer e a carteira de marca. Desligou o telemóvel que comprar na véspera. Marcaram o tempo, uma despedida rápida, que ambas as partes tinha medo de desistir.

Ouviu-se um ruído estranho e uma neblina apareceu do nada dentro da cápsula. Sentiu uma vertigem e perdeu os sentidos. Quando acordou estava sentada num parque, rodeada por crianças desconhecidas. A cidade era a mesma, com menos densidade. O cheiro dos escapes era quase imperceptível e o jardim tinha os canteiros cheios de flores. O dia estava quente sentia-se um vento quente apesar de estar à sombra de um pequeno bosque. Ao seu lado, estava sentada uma mulher magra com um vestido de um tecido fino, creme, com umas flores azuis sobre um fundo bege. Dirigiu-se-lhe com um sorriso.

- Boa tarde, pode dizer-me as horas por favor

- Claro, são quatro e meia.

- A pergunta pode parecer parva, mas pode dizer-me o dia?

Olhou-a com um ar estranho.

- Bom, hoje é terça-feira, dia 15, de Julho de mil novecentos e …

- oitenta.

- sim

Respirou fundo, abriu a mala e retirou o telemóvel. Tinha que ligar ao marido, para lhe pedir que fosse buscar o neto ao colégio e a duas amigas só para lhe fazer pirraça. Ligou o telemóvel. A companheira de banco olhou-a com ar intrigado.

- É uma telefonia?

- Não, é um telefone, disse com um sorriso afectado.

- Estou a ver, disse a vizinha que se levantou a abanar a cabeça.

Não havia meio de o telemóvel adquirir rede.

O hotel onde tinha assistido à conferência abria-se à sua frente do outro lado do jardim. Dirigiu-se lá, entrou nos sanitários e olhou-se ao espelho. Era a mesma pessoa, mas nova, tinha recuperado a juventude. Estava estupenda. Muito melhor do que se lembrava.

Dirigiu-se à recepção para pedir a chave da rede wi-fi do hotel. O concierge devia ser um bocado bronco. Disse-lhe que se queria uma chave teria de pagar a noite. Não se davam chaves.

Ia para casa e falar com a familia. Meteu-se num táxi que a levou à sua rua. A casa não estava lá. Ainda não tinha sido construída. Foi a pé a casa dos filhos. Não estava a casa nem os filhos. O infantário do neto também ainda não havia sido criado. Todas as amigas e amigos não estavam ali. Tinham todos ido para muito longe, para uma eternidade de distância. Era como se tivesse saído num apeadeiro no meio do deserto. A familia tinha seguido viagem e ela ficara sozinha. Era um deserto muito povoado, mas ninguém que lhe interessasse. Para que lhe servia ser trinta anos mais nova se não podia gozar essa recém adquirida juventude com quem lhe interessava? Havia tomado um comboio no sentido oposto ao de toda a gente. Viajara só enquanto todos os outros iam acompanhados.

E haveria volta? Naqueles filmes patéticos dos anos oitenta, regresso ao futuro havia forma. Aqui, tinha sido avisada, não.

Movera-se por um impulso. Viera para um sítio que era um pesadelo. Sem telemóvel sem internet, sem alimentação holística.

E perdera a familia. E os amigos. Iria mesmo começar do zero…

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