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Quem conta dois contos

Quem conta dois contos

27
Mai18

Numa galáxia perto de si

arp

Em nova lera o diário de Anne Frank, considerara um misto entre um thriller e uma loucura.. Também lera “todo” o George Orwell que achara um manifesto político imaginativo. Hoje pensava de forma diversa, estava fechada num sótão, havia dois anos. Desde que fizera 70 anos. Na véspera do aniversário aparecera-lhe à porta um funcionário do MDBM, o ministério da doença e da boa morte, pedira para falar com ela. Fora uma conversa de rotina, como estava de saúde, se sentia dores. Que se sentia bem, que não tinha dores, que familia próxima também não. O funcionário teria não mais de trinta anos, tinha uma voz ligeiramente esganiçada apesar de tentar falar baixo. Enquanto falavam ia tomando notas numa papeleta onde estava fixado um formulário para preencher com cruzes. Não era possível ver o que estava escrito. A preocupação veio com as últimas perguntas. Se tinha alguma forma de sofrimento e se sabia que todos os fármacos para as dores tinham graves efeitos secundários.

A percepção de como o seu futuro encurtara, como se a linha do horizonte viesse chocar com ela, foi tão intensa como se lhe tivessem dado um estalo.

Saiu, precisava de apanhar ar, de respirar o ar da liberdade cheirar os aromas da realidade, o escape dos táxis fedorentos, das flores da banca da esquina, ou do bacalhau seco da mercearia da D. Elvira.

Inspirou fundo, de olhos fechados. Abriu os olhos para o sol do meio-dia. Depois de piscar reparou que na banca das flores não estava o senhor Arnaldo, mas um jovem. O mesmo na mercearia, entrou, a desarrumação era a mesma, o cheiro do bacalhau seco misturado com o cheiro a presunto, mas ao balcão estava uma jovem, de sardas, ruiva. O corpo, apesar de curvilíneo, mostrava bem o gosto pelas bolachas de manteiga e pelos suspiros da terceira prateleira.

- A D. Elvira menina?

- Oh, sabe, estava a sofrer, coitada e…pronto, foi levada pelos funcionários do MDBM

- Quando foi isso?

- ontem…

Sentiu-se primeiro abalada, depois aterrada. Começou a vaguear pela rua. Sentia o coração a bater forte, de forma descompassada. Um jovem, com um boné sobre os olhos, que iam cobertos de óculos escuros, marcou o passo com o dela.

- Foi abordada pelo MDBM?

- Sim, quem é você e como sabe?

- Não interessa quem sou. Pertenço a uma organização clandestina. Juntei-me quando levaram a minha avó.

Parou e olhou para ele.

- Não pare, olhe em frente. Vou enviar-lhe no bolso um papel com instruções. Só vê o papel em casa

Adiantou o passo e desapareceu.

Voltou apressada para casa. Tirou o papel e leu avidamente. Eram poucas linhas, explicava a política de eugenismo vigente. Se quisesse fugir teria de estar pronta nessa mesma noite. Deixar a casa arrumada, como se fosse ao cinema. Levar o indispensável numa mala pequena e ter a noção que não haveria regresso. A organização tomaria conta dela. Se tivesse bens, como joias, devia levá-las para que pudessem ser vendidas.

Quando sentiu baterem à porta já estava pronta há horas. Levaram-na por vielas até um prédio antigo e discreto. Na mesma cidade, num bairro que se poderia considerar problemático. Daqueles onde a policia não entrava ou entrava com medo. Um terceiro andar, um sótão, sem elevador, mas com uma vista soberba para o rio. Se abrisse as janelas podia sentir a maresia pela manhã, disseram-lhe.

- Mas de que vou viver?

- Do mesmo que nós. Não se preocupe.

- E o que vão pensar no banco, se não for levantar a pensão?

- Que foi levada pelo MDBM.

- E os vizinhos

- o mesmo.

- Onde arranjo comida?

- na mercearia do bairro. Aqui está segura. Se precisar de saír, tem que nos dizer. A Micas vem cá e faz-lhe uma maquilhagem que lhe tira 20 anos. Isso e uma roupa moderna.

A casa estava mobilada, passou dois dias à janela, sentiu-se no filme Janela indiscreta.

06
Mai18

Fake news

arp

Estive numa conferência sobre as Fake News. No Circulo Cultural. Foi francamente interessante.

As redes sociais são acusados por grande parte da imprensa de divulgarem notícias falsas. Para dar um ar mais técnico e culto dizem fake news. O Mirante, usou, sobre uma afirmação minha, os termos fake e aldrabices, ainda aguardo pelo desmentido e pedido de desculpas exigido numa carta ao director. Por oposição alegadamente os jornais dão as notícias verdadeiras cumprindo os critérios jornalísticos. A primeira pergunta é o que é uma notícia verdadeira? Exemplos: DN em 9 de Março de 2011 “O presidente executivo da Portugal Telecom (Zenal Bava) foi eleito o melhor CEO da Europa no sector das telecomunicações”. Ou as “notícias” sobre os prémios ganhos por Salgado, ou sobre as capacidades de José Sócrates e as maravilhas que fez com o país. Até sobre a fortuna da mãe deste.

Outra pergunta será se o não noticiar evidências, não sendo “Fake news” se é jornalismo? Como exemplo  o silêncio sobre a abertura da EN 114. Ou sobre a inexistência de uma coisa tão simples como passeios.

Ou ainda a manipulação. Dos tempos em que para não se falar do orçamento de Estado se falava da pen em que ele foi entregue. Ou do cigarro que o primeiro-ministro fumou no avião em vez do desastre da sua prestação em Bruxelas.

Creio que o problema é sério. Para os jornais naturalmente. Hoje é possível ganhar uma campanha ignorando os meios de comunicação social logo de forma muito mais barata. Uma das razões da raiva permanente dos meios contra Trump (ganhou com todos os meios de comunicação contra ele).

Quando os meios de comunicação passaram a publicitários perderam o respeito dos leitores. O tempo em que quais cavaleiros descobriam, investigavam, foi ultrapassado pelo tempo da (tentativa) de manipulação e publicidade.

Hoje felizmente, a tecnologia, permite a cada um de nós emitir uma opinião. Cada um emitir como numa televisão. Os profissionais, começaram (tarde) a correr atrás do prejuízo. Alguns ainda estão a atacar a realidade presente.

À velocidade a que a tecnologia evolui quem não se adapta morre. Medindo o tempo em ciclos eleitorais, creio que uma boa parte dos jornais não vai resistir a mais de dois ciclos – o tempo para os agentes políticos perceberem as sua inutilidade (para os objectivos deles).

 

03
Mai18

Moinhos

arp

Moinhos em terras baixas. O vento agreste, constante, vindo do mar do norte acalmou-o. Deixou que  o pensamento  andasse à deriva. O moinho era uma metáfora dele próprio. Andava à volta, mas não saía do mesmo sítio. Era uma ilusão de movimento. Virou a bicicleta e preparou-se para regressar à cidade. Os campos estavam repletos de túlipas. O primeiro campo era um mar de amarelo. Era uma área enorme de amarelo, por maldade, por erro, ou por gozo, alguém plantara um único bolbo de túlipa encarnada. Era uma abstracção, um erro. Como alguns de nós pensou. Era a diferença. Como tão bem descrevera Ionesco ou melhor ainda Kafka. Estava a sofrer uma metamorfose.

Sentia saudades do vento suão. Da paisagem quase desértica dourada. Do cheiro a pó dos caminhos e de todos os cheiros. Das lavandas no quintal vizinho. Do carvão quente à espera do peixe. Da cera nos soalhos. Da outra vida. Mais quente. Em todos os sentidos. Sobretudo no tacto.

À frente seguiam duas mulheres que pedalavam em silêncio. O único som era o do vento e da sua respiração ofegante. De tempo em tempo ouvia-se um gemido de uma das bicicletas.

As pessoas não têm histórias lógicas. Isso era apanágio dos romances e das novelas. Aí sim, há os maus e os bons. Por vezes mudam de lado, por vezes. Na vida real nada é preto ou branco. Há gradações, há cores, matizes. A maioria das pessoas atravessa a vida sem um rumo ou uma lógica definida. Essas histórias nunca são contadas. Não faz sentido a realidade. E o que não faz sentido não dá uma boa história. No fundo é como na pintura, ou na música. A vida não foi pintada por Miguel Ângelo. Nem por Leonardo. É uma mistura, entre expressionismo e cubismo. Entre a explosão de cores e a formatação onde acabamos inseridos. Metidos numa caixa. Não somos nós feitos em cubos. Somos nós metidos num cubo.

Continuou a pedalar, mas nada mudava. A paisagem mantinha-se, como o seu humor. Uma aparente mudança, o mar de túlipas ia mudando de cor. Como os homens, podiam mudar de roupa, mas a sua natureza não mudava.

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