Numa galáxia perto de si
Em nova lera o diário de Anne Frank, considerara um misto entre um thriller e uma loucura.. Também lera “todo” o George Orwell que achara um manifesto político imaginativo. Hoje pensava de forma diversa, estava fechada num sótão, havia dois anos. Desde que fizera 70 anos. Na véspera do aniversário aparecera-lhe à porta um funcionário do MDBM, o ministério da doença e da boa morte, pedira para falar com ela. Fora uma conversa de rotina, como estava de saúde, se sentia dores. Que se sentia bem, que não tinha dores, que familia próxima também não. O funcionário teria não mais de trinta anos, tinha uma voz ligeiramente esganiçada apesar de tentar falar baixo. Enquanto falavam ia tomando notas numa papeleta onde estava fixado um formulário para preencher com cruzes. Não era possível ver o que estava escrito. A preocupação veio com as últimas perguntas. Se tinha alguma forma de sofrimento e se sabia que todos os fármacos para as dores tinham graves efeitos secundários.
A percepção de como o seu futuro encurtara, como se a linha do horizonte viesse chocar com ela, foi tão intensa como se lhe tivessem dado um estalo.
Saiu, precisava de apanhar ar, de respirar o ar da liberdade cheirar os aromas da realidade, o escape dos táxis fedorentos, das flores da banca da esquina, ou do bacalhau seco da mercearia da D. Elvira.
Inspirou fundo, de olhos fechados. Abriu os olhos para o sol do meio-dia. Depois de piscar reparou que na banca das flores não estava o senhor Arnaldo, mas um jovem. O mesmo na mercearia, entrou, a desarrumação era a mesma, o cheiro do bacalhau seco misturado com o cheiro a presunto, mas ao balcão estava uma jovem, de sardas, ruiva. O corpo, apesar de curvilíneo, mostrava bem o gosto pelas bolachas de manteiga e pelos suspiros da terceira prateleira.
- A D. Elvira menina?
- Oh, sabe, estava a sofrer, coitada e…pronto, foi levada pelos funcionários do MDBM
- Quando foi isso?
- ontem…
Sentiu-se primeiro abalada, depois aterrada. Começou a vaguear pela rua. Sentia o coração a bater forte, de forma descompassada. Um jovem, com um boné sobre os olhos, que iam cobertos de óculos escuros, marcou o passo com o dela.
- Foi abordada pelo MDBM?
- Sim, quem é você e como sabe?
- Não interessa quem sou. Pertenço a uma organização clandestina. Juntei-me quando levaram a minha avó.
Parou e olhou para ele.
- Não pare, olhe em frente. Vou enviar-lhe no bolso um papel com instruções. Só vê o papel em casa
Adiantou o passo e desapareceu.
Voltou apressada para casa. Tirou o papel e leu avidamente. Eram poucas linhas, explicava a política de eugenismo vigente. Se quisesse fugir teria de estar pronta nessa mesma noite. Deixar a casa arrumada, como se fosse ao cinema. Levar o indispensável numa mala pequena e ter a noção que não haveria regresso. A organização tomaria conta dela. Se tivesse bens, como joias, devia levá-las para que pudessem ser vendidas.
Quando sentiu baterem à porta já estava pronta há horas. Levaram-na por vielas até um prédio antigo e discreto. Na mesma cidade, num bairro que se poderia considerar problemático. Daqueles onde a policia não entrava ou entrava com medo. Um terceiro andar, um sótão, sem elevador, mas com uma vista soberba para o rio. Se abrisse as janelas podia sentir a maresia pela manhã, disseram-lhe.
- Mas de que vou viver?
- Do mesmo que nós. Não se preocupe.
- E o que vão pensar no banco, se não for levantar a pensão?
- Que foi levada pelo MDBM.
- E os vizinhos
- o mesmo.
- Onde arranjo comida?
- na mercearia do bairro. Aqui está segura. Se precisar de saír, tem que nos dizer. A Micas vem cá e faz-lhe uma maquilhagem que lhe tira 20 anos. Isso e uma roupa moderna.
A casa estava mobilada, passou dois dias à janela, sentiu-se no filme Janela indiscreta.