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Quem conta dois contos

Quem conta dois contos

29
Out18

Santarém 2021

arp

Santarém 2021

Francisco acordou cedo, deixara a janela, de alumínio, basculhada. O setembro, outonara quente. As portadas de madeira, branca e ligeiramente vergadas ao peso dos anos, empenada dissera o empreiteiro, homem pouco dado a coisas da antiguidade, estavam encostadas pelo que a visão era o último sentido a despertar. O cheiro da primeira chuva, das calçadas molhadas e do pó assente, garantiram-lhe a descida da temperatura. Pôs os pés no chão de madeira. O velho soalho de tábuas largas ganhara uma nova vida depois de ter sido afagado e aromatizado com camadas de cera. Já quase nem rangia. Abriu ligeiramente as portadas reduzindo a penumbra através de feixes de luz tremeluzente pelo coar desse sol outonal nas folhas do grande plátano fronteiro ao prédio. Sobre a almofada repousava uma cabeça de olhos fechados e respiração lenta de sono profundo. O nome soubera-o na visita guiada que fizera à cidade havia 3 anos. Vira, num consultório de uma dor de dentes, uma revista de viagens, deixada para trás uma descrição da movida na antiga cidade medieva. Na capa anunciava-se o santuário e, esperava, a lógica peregrina dos visitantes, mas como sempre acontece nos consultórios alguém, possivelmente dorido de um siso a menos levara consigo a página 5. E também a 18. Assim, em vez de saber o peso das almas peregrinas, ficara-se pela leveza dos cabelos lavados com um novo champô. Por razões que a razão poderá, ou não, conhecer, talvez raiva para com o desdentado que levara a página 5, ou simples curiosidade, dirigira-se à gare, do oriente, e metera-se no primeiro comboio para norte. Saíra numa estação, nova, dissera-lhe o companheiro improvável de viagem. Um jovem de oitenta anos que lhe foi fazendo perguntas, mas que sempre deu as respostas mesmo antes de Francisco conseguir abrir a boca. A estação estava adoçada a um talude havendo uma elevação através de uma grande cabina de vidro que levaria umas cinquenta pessoas. Entrou no elevador juntamente com uma turba de jovens, aparecida do éter e que, apercebeu-se, iam para um concerto de uma qualquer banda inglesa. Saíram uns metros acima. Francisco apanhou um táxi, eléctrico, a turba apanhou os pés e deu-lhes uso.

- para onde?

- olhe para o centro

- o patrão manda

O carro, preto e verde, arrancou silencioso, sem o cheiro característico dos antigos nem o fumo do escape. O motorista iniciou o monólogo dos motoristas, sobre o clima, as mudanças e o que era no seu tempo; sobre a economia e a política acabando no urbanismo. A cultura geral da maioria dos motoristas era um dado adquirido internacionalmente.

O carro subiu até um planalto, passou por o que parecia ser uma praça de toiros, numas cores andaluzas de dimensões maiores que o colosseu. O coliseu de Roma e sobretudo mais vivida uma vez que hoje funcionava como um centro comercial já que tinha muitas lojas. O espaço estava integrado numa envolvente de piso em saibro de um amarelo-torrado. Um pouco à frente um relvado de grande dimensão onde uma a vida acontecia. Um grupo de crianças brincava à cabra cega, um homem de feições orientais orientava uma sessão de tai chi. Mais além uma partida de futebol com balizas feitas com um monte de casacos.

Um cartaz anunciava o festival de teatro Mário Viegas.

Foram andando, até chegarem a um antigo mercado revestido com painéis de azulejos com cenas de vidas passadas. O táxi parou.

- olhe se vem à procura, comece por aqui. Tem vários sítios onde pode comer ou beber um copo e ainda comprar uns vegetais se quiser. Riu-se como se tivesse dito uma graça.

Francisco pagou a corrida, correu as várias lojas do velho mercado. Uma tabacaria, padarias, café, uma livraria. Nesta em destaque o livro que, dizia o cartaz, ganhara o prémio de literatura “Santarém” nesse ano.No ar misturavam-se os cheiros do café acabado de fazer com o do pão. Metade do mercado fora convertido numa esplanada interior, para um dia de chuva como diriam os ingleses. As mesas estavam todas cheias de gente. Desistiu da ideia do copo e dirigiu-se a uma loja titulada com “turismo”.

- Bom dia, venho conhecer a vossa cidade.

- Só a cidade? Perguntou um vestido verde seco de linho, curvilíneo, recheado por uma rapariga morena com um sorriso que se abria abaixo de uns olhos verdes. Não teria, felizmente, mais de 1,60m. Se assim enchia a loja o que faria se fosse maior.

- Bom, estou aberto a sugestões. Não esperava ser abordado assim. Aliás nem sabia o que esperar.

- Não trouxeste bagagem? O tratamento por tu tinha o intuito de desarmar, em conjunto com o sorriso.

- Estou só de passagem. Uma frase que tinha de stock para situações semelhantes.

- Estamos todos. Disse com uma expressão misto de gozo e tristeza – Vamos. Serei guia por uma tarde.

- por onde começamos?

- Pela volta dos monumentos e acabamos a jantar na praça maior.

- Bom, vamos então. Correram igrejas, barrocas, góticas, mas sobretudo abertas. Um sistema de videovigilância anunciado às portas garantia a protecção contra o vandalismo. Em cada uma das igrejas ouvia-se música. Bach na maioria. Passaram pela fachada modernista de um antigo cinema, hoje hotel e frente a um bloco de apartamentos recente.

No regresso ela parou frente a uma fonte barroca, no centro de uma praça, velha de cognome.

- Feliniana.

- Obrigado

- Perdão?

- Adivinhou, chamo-me Ana.

- Pensava num filme. Acaba dentro de uma fonte.

A praça estava quase vazia, de pessoas, olharam-se e ela saltou para dentro de água. Acabaram a noite a jantar numa grande praça que fora uma parada do antigo quartel e fora dotada de vida transformando as casernas em apartamentos e escritórios e o rés-do-chão em cafés e restaurantes. Nas traseiras havia outra praça que fora convertida em sala de concertos de ar livre. O som do bater das botas fora substituído pelo batuque das baterias.

A casa comprara-a a um fundo que, em parceria com a Câmara municipal, recuperava casas que os proprietários não conseguiam ou não queriam. Escolheram a número 5. Todos tínhamos um número a que nos afeiçoávamos, por uma razão ou outra. A leitura da tetralogia de Thomas Mann deveria ser obrigatória. Perceber os números. Ele ainda só percebia o 5.

Passara um ano e hoje choviscava.

14
Out18

2020

arp

Era o ano de 2020. O clima andava agreste, chuvas diluvianas e verões tórridos levaram o lobo mau à loucura. Isso e o facto de o aumento despropositado do IMI ter levado os três porquinhos a abandonar as suas casas. Faliram. O bloco assim se chamava o partido dominador criara um imposto sobre as casas dos porquinhos e dos camelos. Estes não aguentarem e foram viver para longe. Para o deserto para ser mais concreto. Os camelos e o porquinho prático que os seus irmãos recebiam o rendimento mínimo enquanto foram obrigados a fazer cursos no instituto de preparação do porco.

Assim foi decidido que a melhor coisa a fazer era uma lobotomia, coisa que foi feita ao lobo mau.

Não foi aliás a única coisa que aconteceu. O PAN (Partido Anti Nada) propôs e foi aceite, que as histórias moralizadoras tendessem a acabar. De igual modo foi lançado uma norma proibindo as fábulas por humanizar os animais quando o que se pretendia era exactamente o contrário. Os livros de La Fontaine foram queimados numa pira pública.

Era chegado o tempo de se passar á clandestinidade.

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