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Quem conta dois contos

Quem conta dois contos

05
Abr19

O racionalismo dialético

arp

Aterrara naquele dia de 2050 no aeroporto de S. Francisco. Fora a primeira vez que voara num avião totalmente robotizado. Sem pilotos e sem hospedeiras. As refeições a bordo tinham sido simplificadas e era um robot da geração 3.5 que as distribuía. A visão para o cockpit era total, um vidro à prova de bala mostrava a frente do avião onde nenhum humano era necessário. A entrada para o avião havia sido conduzida através de um holograma representando o presidente da companhia que recebia cada um dos passageiros. Para se viajar mais leve e célere, as bagagens iam noutro voo ainda mais automatizado.

Os protocolos no aeroporto haviam sido despachados em minutos, passara num túnel detector.

- Mas aqui detectam o quê? Perguntou ao companheiro de viagem que lhe saíram em sorte.

- Droga, metais, até de mau feitio dizia-lhe com bom humor. Para a próxima trago a minha sogra para ver o resultado.

A fila dos táxis à porta do terminal também era estranha. Os carros estavam lá, alinhados, amarelos como sempre, mas sem ninguém ao volante. Nem sequer, como era norma, em pé encostados indolentes ao carro conversando sobre a vida. A cidade perdera centenas de filósofos. Onde estavam os homens que reflectiam profundamente sobre o deficit, os eleitos, o preço da gasolina ou o futebol?

Quando chegou a sua vez a porta do carro abriu-se automaticamente e ouviu uma voz metálica em português:

- queira sentar-se, deseja ir já para o seu hotel?

- sim – gaguejou, mas resolveu não dizer mais nada, para ver o nível de conhecimento do sistema.

- olhe bem para este pacóvio! Já viu? Não sabe guiar. A carta saiu-te na farinha Amparo?

- Não estou a perceber?

- Resolvemos dar um toque lisboeta para se sentir em casa.

Chegaram ao hotel, sem nunca ter furado um semáforo ou ultrapassado um limite. Pelo caminho até ao centro passaram por um enorme acampamento onde pessoas, quase espectros, se aqueciam à volta de latões onde crepitavam fogos.

Chegou ao hotel onde foi recebido por um robot andrógino humanoide que o recebeu à porta do táxi. Entrou e tinha finalmente um ser humano atrás de um balcão convencional.

- boa tarde, bem vindo ao hotel Lisboa!

- Mas não era S. Francisco?

- O nome muda com o cliente. Já sabemos que ficou incomodado com a travessia do bairro H, a sua expressão traiu-o, é a informação que consta neste momento da sua ficha. Isto além de que gosta do gim com hortelã e torradas de pão de centeio.

- Estou a ver que sabem muita coisa

- Esperamos saber tudo sobre os nossos clientes.

- De facto fez-me impressão a quantidade de desempregados…

- Sabe, a sociedade está em transformação, estamos em fase de adaptação. Há contudo pessoas que não se adaptam. A evolução acabou com várias profissões.

- Por exemplo?

- arquitectos, médicos de clinica geral, juízes, advogados e políticos naturalmente.

- Como?

- Bom, se precisar de um projecto um computador consegue fazê-lo melhor que qualquer humano, um julgamento é feito sem erros. Foi construída uma base de dados com toda a legislação e todas as penas aplicadas desde 1863. Conseguimos um julgamento completo em três minutos e oito segundos, em média claro.

- E os políticos?

- Não existem. As pessoas cansaram-se da corrupção, das agendas dos partidos, enfim, da politica ficámos só com o melhor. As pessoas votam em programas que são gerados por várias main frame, em função das, ainda, poucas faltas que possam ser sentidas. As pessoas votam e o programa é feito cosendo as várias propostas

- mas costuma haver propostas perfeitamente antagónicas

- isso é teatro politico. Acabámos com isso. Trata-se de política não utópica. Distópica se quiser.

- Mas o que farão no futuro esses desempregados?

- Estamos a tratar das imigrações. Para países mais atrasados.

- Mas a imigração sempre foi para países mais ricos e desenvolvidos.

- Mas aqui estamos no futuro…

O quarto tinha um aspecto “normal”, mas pensou se os quartos não seriam todos diferentes e eram atribuídos em função do perfil do cliente.

Era domingo, resolveu ver se havia um serviço religioso. Fez a pergunta à assistente digital. Deu-lhe uma morada e uma hora. Era perto, resolveu ir a pé. A igreja era um edifício todo em vidro, o oposto do que sempre foram as igrejas, locais de recolhimento, de reflexão, de intimidade. Aqui a exposição era total. O eterno cheiro a pedra, velas queimadas e humidade, omnipresente em todos os templos do mundo, foram substituídos por um aroma a madressilva. A renovação do ar era garantida a oito ciclos por hora – facto garantido num cartaz afixado na porta, no lugar onde, em igrejas de outras geografias estava afixado o horário das confissões. A celebração ia começar, a igreja teria umas vinte pessoas. Não havia juventude, o nível etário era elevado.  Estariam uma vinte pessoas.

Perfilou-se esperando a entrada do pastor. Do chão saiu um holograma com uma forma humanoide que, em quinze minutos e dezoito segundos cumpriu toda a liturgia. Não havia consagração, aguardava-se que um sínodo em Roma decidisse se a consagração, feita por um computador garantiria a transubstanciação das partículas.

- Acredita nesta fantochada? A pergunta foi feita pela vizinha de banco, olhando para os sapatos e sottovoce

- Como?

- Se acha que esta fantochada é uma missa?

- Bem…é…diferente.

- Eu venho aqui só para dar a quem aparece que há um movimento de resistência subterrânea. Olhe para baixo, não olhe para mim.  Lembra-se do 1984? Era uma brincadeira. Aqui é dos poucos sítios onde não podemos ser ouvidos ou filmados, pelo menos assim esperamos.

- Onde os posso encontrar?

- Decore esta morada. Quando for ter connosco deixe o telefone em casa, bem como o relógio e tudo o que for electrónico. Apanhe um táxi até ao museu de pintura digital entre, finja que vê as obras e depois saia pela porta a nascente.

- Pintura digital?

- sim, pintura produzida por  tintas sem cheiro, pixéis…Adeus.

No regresso ao hotel, sentiu-se febril. Resolveu ir a um hospital que vira no caminho.

Entrou e a urgência pareceu-lhe igual a qualquer outro hospital. O cheiro a éter, batas brancas, ruídos de tosses e choros de crianças. Depois de corridas as formalidades do costume acabou frente a um médico que olhava para um monitor. Descreveu-lhe todas as doenças que já tinha tido. Pediu-lhe que pusesse uma mão sobre um sensor, coisa que fez. Olhou-o nos olhos.

- o que vem um português fazer a este local?

- vim ver como isto funciona. Ou se funciona?

- o quê? A medicina?

- Tudo…

Baixou o tom de voz.

- Esteja atento e tome cuidado. Aqui não há problema, só lidamos com situações de emergência, ou urgência pelo menos. Coisas que não podem ser feitas por máquinas. Agora a medicina preventiva é gerida por computadores. Os diagnósticos são feitos por máquinas. Bem como a terapêutica. A medicação é dada em frascos brancos, onde os rótulos só dizem a quantidade e as horas das tomas. Se olhar à volta os pobres deixaram de procriar. Doentes com mais de 60 anos são tratados com palcebos e algo que tire as dores.

- O admirável mundo novo…

- Sim, não é mesmo para velhos.

Acordou sobressaltado. Adormecera na espreguiçadeira que tinha posto à sombra do chaparro velho de 200 anos. Era a voz da mulher:

- Artur! Ligaram da taberna. Estão à tua espera para o jogo…Não te esqueças de trazer os enchidos para o cozido quando voltares…

05
Abr19

dias de frio

arp

Resolvera aprender a tocar um instrumento para impressionar a Marta, do 6º ano. Tinha uns olhos verdes, sardas e uma cor de cabelo, sabia hoje, inspirara Ticiano. Tinha uma voz aflautada e umas mãos ridiculamente pequenas. Chegava à escola perfumada e deixava o corredor aromatizado, como quando atravessamos um campo de lavandas. Talvez fosse apenas imaginação.  Passara a semana seguinte  a ouvir With a litle help from my friends. Irritava-o o olhar condescendente da mãe que o olhava como quando se vê um filme pela segunda vez e se sabe o que vai acontecer em cada cena.

A sala de aula era virada a poente e ao final da tarde, costumava olhar o reflexo dela nas vidraças da janela. A luz encandescia-lhe o cabelo e via-se uma aura nesse reflexo.

Como dizia Vinicius “há tanto desencontro nessa vida”.

Fora há trinta anos. Não a conseguira impressionar, ou pelo menos não servira para ultrapassar o João do 7º C e as suas habilidades físicas.  Conseguia atravessar o pátio em pino. O facto de ele ter as piores notas em quase todas as disciplinas não diminuía o seu sucesso. Nem o facto de fumar, ou provocar brigas frequentes. O jovem ser humano, em particular o feminino era estranho. Era atraído pelo abismo.

Resolveu procurar outras notas. Começou pela guitarra. O professor que os pais lhe proporcionaram  tinha a casa cheia de instrumentos, facto que lhe permitiu experiências em todos eles. Era como se estivesse numa ocasião social e fosse falando com várias pessoas, de feitios e sensibilidades muito diversas. No piano, naturalmente, bem como outros instrumentos de cordas, mas o que acabou por levar a melhor foi o acordéon. Era demasiado grande, naquele tempo, mas os anos encolheram-no até conseguir uma simbiose perfeita. A escolha derivara de um disco, de vinil, de Astor Piazzolla. O facto de ser um instrumento fora de moda também não minorara a sua atractividade.

A casa era um amontoado de gravuras de quadros célebres pregados nas poucas paredes desprovidas de estantes. Era um caos organizado. O ambiente era intimista, com a luz coada por uns cortinados pesados e escuros, com umas ramagens em relevo num degradé de verdes

Hoje dava aulas, numa terra distante, onde a maioria das mulheres podia ter sido pintada por Ticiano. Perdera a Marta de vista no final desse ano longínquo, quando mudara de cidade. Tinha a agradecer-lhe esse companheiro inseparável com quem relaxava nos dias longos ou que o acordava da modorra nos dias curtos. Era uma relação estável neste mundo instável. Quando se sentia ansioso, agarrava a guitarra e tangia-a. Ao segundo acorde, essa conjugação que dava cor aos sons, já se abstraíra.

Os frios de longa duração neste local distante forçavam à permanência em casa e à introspecção. Com ela a música, a leitura, a escrita e a pintura. Ocupações dos solitários em zonas mais meridionais.

 

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