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Quem conta dois contos

Quem conta dois contos

26
Mai19

o sal da vida

arp

A noite estava fria, o vento cortante obrigava L. a dobrar-se para avançar. Apertou as bandas do casaco para o peito e sentiu o alforge junto às costas. O negrume da noite erareforçado pela falta de candeeiros, ou melhor de lâmpadas nos candeeiros e aumentava a sensação de inverno. L. teve um arrepio de frio, mas sorriu. A inclemência do tempo garantia o fraco patrulhamento. Chegou ao destino. Um prédio de 4 pisos, do que foi o século XX, em mau estado daqueles com cantarias envolvendo as janelas como molduras de quadros e beirados em ondas vermelhas que eram rematadas a branco como a espuma do mar. Aparentemente estava totalmente devoluto e abandonado alguns vidros partidos de onde assomavam pombos. A porta principal do prédio, em espessa madeira, que fora verde, estava aparentemente fechada. L empurrou a porta, que chiou e entrou no patamar, em frente havia uma segunda porta e à direita a escada de madeira que dava acesso aos pisos. Empurrou a porta que era uma espécie de guarda-vento sem fechadura. Ouviu os som dos seus passos contra o pavimento de pedra. Desceu uns degraus para a cave, um pequeno lance de apenas 5 degraus. Bateu na única porta existente, resistente dos tempos originais, de cor indefinida. O puxador era móvel para servir de batente. Um “sim” interrogativo ouviu-se. L disse a frase esperada: “os animais são todos iguais, mas uma são mais iguais que outros”. A porta abriu-se e apareceu um homem pálido envergando um casaco de rua espesso. Do interior saiu um ar ainda mais frio e um cheiro a mofo. O homem afastou-se para deixar passar L. O interior era simples, uma sala ampla com pilares estruturais distribuídos de forma geométrica pelo meio. A luz provinha de um candeeiro a pilhas e de várias velas acesas e ancoradas no chão de mosaico cerâmico. O “boa noite” foi o único som audível. Numa decoração babeliana composta por sofás velhos de vários grupos e cores, que haviam pertencido certamente a “ternos” em casas alcatifadas noutra realidade, época ou dimensão. O tempo fora clemente apesar de tudo. Estavam utilizáveis. Três das quatro paredes estavam forradas de estantes de livros, L olhou de perto e viu o Fiesta de Hemingway, Sobre a caça e os touros de Ortega y Gasset e  Animal Farm do Orwell, livros que estavam na black list havia anos. A única parede despida de móveis fora vestida com fotografias de vacas, pretas e brancas que costumavam fazer parte da paisagem, coladas com fita-cola e umas reproduções de gravuras de Picasso, com cenas de touradas. Nos vários sofás estavam sentadas várias pessoas, heterogéneas no sexo, na idade e no aspecto. Saudaram L com trejeitos de cabeça. As palavras eram poupadas. Sabia que o interrogatório começaria dentro de segundos. E assim foi, se tinha deixado o telemóvel em casa e se tinha desculpa para esse esquecimento criminoso se fosse apanhada. Que sim, tinha descosido, propositadamente, o bolso do casado e aberto um buraco no forro de modo a parecer que caíra acidentalmente. O ar de alívio foi notório. O ano tinha começado com mais uma série de proibições. Já não se podia possuir fotografias de gado bovino. Comer carne havia sido proibido logo no ano 3320. No ano em que o calendário mudara da era cristã para a de Akenaton. Mas sobretudo não se podia andar sem telemóvel, um sistema de controlo informático sabia onde estava toda a gente a todo o momento. Os tempos tinham seguido uma trajectória enviesada, as escolas doutrinavam as crianças. Nenhuma criança nascida nos últimos 20 anos havia provado um bolo ou um enchido. A televisão passava apenas futebol e desenhos animados “correctos”. E muitos “debates” e comentários doutrinadores. As crianças eram incentivadas a fazer perguntas na escola. Se alguma perguntasse o que era uma vaca nos dias subsequentes os pais eram presos e levados para um campo de reeducação. Eram sujeitos a um tratamento feito à base de vegetais, na primeira semana só comiam cenoura, na segunda só repolho. Quem sonhasse alto com carne era considerado irrecuperável e enviado para uma ilha. Este dia, ou noite, era especial. Iam compartilhar um cozido à portuguesa. Algo há muito proibido. Cada um ficara responsável por trazer um dos ingredientes e conforme chegavam iam deitando numa panela que borbulhava. O mais difícil foram os enchidos, mas tinha havido alguém que conhecia alguém que tinha trazido de um país distante.

Estava ligada uma televisão onde se via apenas o sal e pimenta da ausência de emissão. L sentou-se e um rapaz dos seus 20 anos ligou um leitor de DVD, objecto do passado. Ouviu-se um estalido e o ecran encheu-se literalmente de vida. L reconheceu o local: era a praça de toiros do Campo Pequeno, em tempos idos e começava uma corrida de toiros. A praça estava cheia, ouviam-se os aplausos. Na semana anterior, tinham visto filmes “caseiros” sobre o pastoreio de vacas e uma matança do porco. Um luxo, S. tinha distribuído sanduiches de presunto e no final um pudim Abade de Priscos, cheio de açúcar e toucinho. Três elementos tinham passado à clandestinidade havia um ano. Tinham sobre eles um mandado de captura por crimes graves. Foram apanhados a traficar açúcar e sal um deles. O outro transportava num saco térmico dissimulado no casaco 3 jaquinzinhos. A vida perdera o sal…

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