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Quem conta dois contos

Quem conta dois contos

14
Mar20

Luís

arp

 

Luís acordou sentindo a pressão da terra dura nas costas. Mas fora um pingo solitário na cara que o tinha despertado. Abriu os olhos cinzentos e apercebeu-se de um céu fechado de nuvens. Sentou-se. O cheiro a maresia solidificava o ar. Viu que se encontrava num promontório sobre o mar, mar encoberto como nos dias sebastianistas.

Ao passar a mão pela cara sentiu uma barba a despontar, não se barbeava havia 3 dias, desde que começara esta aventura. Aventura talvez não fosse o termo correcto. Nas aventuras temos sempre, ou quase sempre o lado positivo, da procura, da descoberta, de novos e maiores horizontes. Aqui era um pouco o inverso.

A cabeça doía-lhe. Aos poucos começou a recordar-se das razões da sua presença naquele local. Resolvera, ponderadamente, ou não, o tempo é uma decorrência da vida, não produz bom senso, que estava preso a uma vida sem sentido, cumprindo rotinas diárias, ou anuais. Precisava do seu espaço. Se fosse mulher Balzac teria com ele alguma complacência, mas para com os homens não existem esses sentimentos benevolentes, passam da infância à idade adulta assim que formalizam uma qualquer relação.

A relação com Rosa, feita de exigências, de tempos e de regras, finara-se com a última queda da folha. Não praticara um luto. Fora como quando se acompanha um doente crónico de uma doença grave, o luto vai sendo feito ao longo do processo.

A relação, como muitas, era como quando usávamos uma pasta de dentes. Primeiro consumíamos a golfos, quando se aproxima do fim, com muita moderação, no final espremida até que acabamos por cortar o involucro, com uma tesoura para nos apercebermos que nada havia já para aproveitar. Era só mesmo involucro.

Desapropriara-se do peso da sua história. Reduzira o passado a duas malas e uma mochila e voara para uma pequena ilha. O trajecto obrigara-o a vários transbordos sendo o último feito num barco dual, que servia para transporte de passageiros e para a pesca. Nos dias turísticos era um cruzeiro, nos outros uma traineira.

Depois de despejado em terra, quando o barco atracou no cais de betão e foi lançado um passadiço metálico para que saíssem os passageiros, despojou-se da companhia. Eram quatro os viajantes nesse dia, três homens e uma mulher. De qualquer modo pensou que não voltaria a sair dali. A ondulação na sua mistura explosiva com o cheiro a gasóleo e aos restos das cavalas mal retiradas do convés haviam-lhe revirado as tripas. Se tivesse ido nas tropas de Pizarro não se teria oposto à queima do navio.

Arrastou as malas para fora do trilho que fora promovido a rua, subiu um pouco e caiu no chão. Deitou-se de costas, com a cabeça apoiada na mochila e adormeceu.

O porto tinha um quebra-mar feito de pedras arrumadas como se fosse a calçada de gigantes. No tardoz um corredor de betão amparava as pedras que sofriam as crises existenciais de Neptuno e além desde corredor o ancoradouro onde aportavam os barcos. Aos barcos eram dados todos os graus de liberdade para que não se partissem aquando das marés ditas vivas, como se houvesse marés mortas.

A ideia de abandonar a sua casa, um segundo andar, sem elevador, mas com uma área generosa e com vista para o rio aparecera do nada, como uma epifania. A casa tinha sido herdada da avó, com quem vivera quando frequentara a universidade. Os pais haviam ficado na cidade do interior. Com a morte da avó aquele neto e filho único herdara e assumira a casa, como algum pecúlio que lhe dera um certo conforto financeiro. Se não fizesse grandes loucuras podia sobreviver só com este rendimento. Apesar disso arranjara um emprego, do curso de engenharia aproveitara-se a vertente matemática e acabara numa empresa de aconselhamento de gestão. Assim, em casa, como nas empresas a que dava assistência, reorganizara os espaços, pintara as paredes e tectos, as primeiras de um amarelo suave, as madeiras também haviam passado do acastanhado para um branco casca de ovo. Libertara-se da mobília de tremidos do escritório do avô e fizera nessa divisão o seu quarto, despojado, uma cama D. Maria, que sempre fora sua, com embutidos de marfim numa madeira de vinhático. Não dispensara a tecnologia e substituira o espelho por um plasma. Do antigo quarto da avó nada ficara, encomendara um armário que transformou o quarto num dressing. Rosa desenhara o armário e sobretudo enchera-o. A sala tinha agora três sofás brancos unitários. Mantivera nas paredes os quadros, cópias, originais da casa. Fora dali que ela partira. Ele vivera ali dez anos. O tempo da vida académica dos quais quatro com a avó, dois anos só e três com Rosa. A decisão da vida “a dois” não acontecera num momento. Não tivera um alfa em que ele lhe pedira, ou ela se insinuara. Não fora por erupção como nos vulcões, fora por sedimentação, como nas lezírias. E como diz o evangelho não se deve construir a casa sobre a areia. Ela ficara uma noite porque tardaram vindos de um fim-de-semana, noutra deixara uma escova de dentes e de cabelo. Uma camisa de noite, umas calças, uma roupa que sujara no jantar e que resolvera lavar de imediato. Aos poucos ela, ou as coisas dela, foram-se apoderando do espaço. Mas o dia-a-dia pode matar as relações. Ele começou a sentir-se como os sherpas, carregado, esforçado para que outros tivessem a comodidade na travessia. Até que se começar a sentir-se asfixiado, com falta de oxigénio. Ela começara a chegar cada vez mais cedo, vinda do seu atelier e ele cada vez mais tarde. Até que a bisnaga ficou vazia e ele resolveu cortá-la mesmo. Num anúncio sereno, disse-lhe que iria uma semana para fora para ela ter tempo de sair. Não houve um drama, nem grandes perguntas. Era uma constatação, como quando o médico nos faz um diagnóstico de uma doença que já assumimos que temos. Não são só as rochas que sofrem erosão com a passagem do tempo.

Essa semana foi passada ou passeada, pelo interior do país e pelo seu próprio interior. A introspecção necessária, o exame de consciência, como dizia a avó e a catequista em tempos idos. Fora nessa busca que começara a germinar a ideia de fuga à sua realidade.

Nesses dias pensou como eram diferentes os tempos. Os avós haviam namorado por carta. O namoro resistira a quatro anos de ida à guerra do avô. Luís lera essas cartas, que a avó lhe mostrara. Eram um misto de interrogações filosóficas e de saudade. Por vezes saía um poema. Já não há canções de amor, como dizia a cantiga, pensou. Quem é que consegue resumir o amor a duzentos caracteres de um Twitte? Ou fazer poesia, incorporar uma métrica e uma acentuação numa mensagem de telemóvel? Como teria feito, hoje, Pessoa?

E como sabemos da física, o difícil para por um corpo em movimento é a força inicial que se aplica. A partir daí, sem atrito, podemos chegar ao movimento perpétuo. A força foi-lhe aplicada nas costas quando viu a casa vazia, sem um bilhete, apenas uma chave sobre a cómoda da entrada.

Não queimou os barcos, fechou a casa e levou a chave com ele. Teria um porto de regresso.

A escolha daquele lugar em concreto e de uma ilha, prendia-se com a improbabilidade de ser encontrado. Nenhuma Rosa o imaginaria num local incivilizado, sem códigos complexos de linguagem e protocolos não escritos, mas assumidos, sobre as condutas a ter. E sobretudo a suposta cultura da tribo, algo a que não se devia, nem podia fugir.

Conseguira um contacto na ilha que lhe dissera haver três casas para arrendar. Escolheu a de preço e geografia intermédia.

A ida necessitou de vários meios de transporte. No despojamento vendera o carro pelo que usou transportes apelidados de públicos.

Começou por um táxi, um transporte bicolor, munido das duas malas a que o motorista olhara desaprovadoramente e que havia colocado na bagageira com um gemido desnecessário. Nitidamente não lhe apetecia fazer o frete. Quanto depositou as malas na bagageira aproveitou o momento para cuspir para o chão. A mochila colocou-a António ao colo. Sentou-se no banco da frente, sabia, por experiência, que por qualquer razão, os monólogos dos taxistas eram mais esparsos quando o passageiro viajava à frente. Talvez os considerassem como iguais o que reduzia a necessidade missionária para uma conversão durante o trajecto.

O rádio informava sobre os movimentos dos mercados de capitais, notícias ouvidas com diligente interesse pelo motorista. Só quando o som de uma música cubana substituiu a voz grave que debitava os índices resolveu falar.

- Já viu o estado em que está a economia.

- Hum, hum – era sempre recomendável não soletrar palavras, bastavam monossílabos que como os peões de brega coadjuvavam a lide. Intervenções discretas.

O motor era ruidoso e o taxista debitava a sua ladainha baixo. Luís tentou manter os olhos abertos naqueles trinta minutos.

À chegada à gare foram trocadas notas pelas malas e uns grunhidos de ambos os intervenientes definiu a caducidade daquele contrato.

O dia ia pelo seu meridiano pelo que a gare estava quase vazia. Apenas idosos, que se podiam dar ao luxo de viajar “à hora do trabalho”, se movimentavam lentamente pelos pavimentos cinzentos polidos por milhares de pés.

Comprado o bilhete, em primeira classe, local onde esperava estar blindado às curiosidades mundanas do eterno curioso passageiro da frente.

Apanhou o rápido das quinze e trinta e dois, que partiu às quinze e quarenta e quatro. Interrogava-se sempre com a precisão dos horários e a imprecisão do seu cumprimento.

Conseguiu o objectivo, viajou só na carruagem. O “pica” apareceu e desapareceu mastigando uma pastilha elástica com a força de quem deixara de fumar recentemente.

Teve de fazer uma mudança de linha, apeou-se numa estação no meio de nenhures, ficando numa plataforma no meio de várias linhas e onde um casa, de arquitectura modernista, curvilínea e sobrelevada, dava aos controladores a ilusão de uma vista privilegiada. Nas linhas mais afastadas repousavam os refugos de outras viagens, carruagens que transportaram pessoas, mas sobretudo sonhos, eram hoje pesados pesadelos.

Uma estação é ouvida e cheirada. As fonéticas das várias nacionalidades e dentro destas as várias acentuações. E os cheiros, do alcatrão, onde foram submergidas as chulipas, omnipresentes, dos perfumes intrusos e desagradáveis às fragâncias leves e ao cheiro próprio de cada uma das pessoas circulantes. Pessoas sem paragem, como as composições.

O ser humano só se move por duas razões, ou na busca de algo melhor ou na fuga de algo pior. Por vezes consegue-se acumular ambas as razões, como quando se faz uma peregrinação, mas é muito raro.

No caso de Luís era fuga pura, da realidade. Da sua realidade, não que fosse muito pior que outras realidades, de outras circunstâncias, mas quem é que quer saber da circunstância dos outros? Só os sociólogos ou antropólogos e não todos.

O segundo comboio levara-o até à costa, num compasso lento, bom para acertar o passo com o local para onde ia. Como nos primeiros dias de férias, em que todo o nosso ser se esforça por alterar o seu ritmo de vida.

Quando finalmente se levantou, subiu a estrada sinuosa, em macadame, pontuada por árvores de folha caduca, plátanos e muros de pedra musgosa, até ao casario onde o pavimento das ruas mudou para uma calçada de cubos bordejada por uns passeios em lajes de pedra. A paisagem era tricolor, telhados vermelhos, paredes brancas e cantarias cinzentas ou pintadas de cinza.

Dos beirais alguns pombos olhavam-no meneando as cabeças.

De tempo em tempo um candeeiro simples, um poste de betão encimado por um sino luminoso.

O ar húmido e fresco convidou-o a fechar firmemente o casaco para poder usar as mãos no transporte das malas.

O passeio foi feito sozinho, os outros passageiros deviam ter estômagos mais resistentes e haviam seguido directos do barco.

Luís dirigiu-se a uma casa com a porta pintada de vermelho, cor dissonante, mas que era o referencial que lhe havia sido dado para levantar a chave da casa. Não havia campainha, o chamamento era feito “à antiga”, o puxador era um batente, que António usou por duas vezes.

A porta foi aberta quase de imediato, por uma mulher que trazia vestida uma bata e um pano multicolor onde limpava as mãos. Seria septuagenária, abaixo do carrapito tinha uns olhos escuros e penetrantes enquadrados por rugas que lhe definiam o carácter, olhos inchados de cebola da sopa ou da tristeza. A primeira condizia com o aroma a sopa de legumes, de que se ouvia o vibrar do testo na fervura. O aroma mesclava-se com o de carne assada. Para mulher era extraordinariamente parca em palavras. Com um bom dia, um claro e um aqui tem, ficou concluída a relação comercial e entregue a chave.

A primeira imagem que temos de uma casa é olfactiva. Até um cego consegue, ao abrir da porta, dizer a idade, a classe social e o número de habitantes de uma casa. O mais fácil era saber se, num dia de chuva, a casa teria um cão.

No caso esta mulher devia viver apenas com o marido, mas teria certamente familia para almoçar. Familia que justificava a carne que assava e talvez a quase mudez. Podia ser pressa. Estava certamente ocupada.

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