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Quem conta dois contos

Quem conta dois contos

06
Abr20

a revolução em marcha

arp

A notícia corria na web, mas de forma dissimulada. Cada consumidor tinha que se inscrever numa plataforma. Usava um nome falso, morada falsa e tinha de prestar um juramento em conforme manteria segredo. Toda a actividade era altamente ilegal, apesar de ser prestada por voluntários, mas como diziam as notícias, também os terroristas são voluntários. Comemorava-se o quinto mês do encerramento. O Grande Irmão continuava a proibir os relacionamentos. Esperava-se reduzir a população do planeta em 500 milhões. As estruturas de afecto haviam sido destruídas. Afectadas pelo medo, as pessoas tinham deixado de se olhar, passavam umas pelas outras baixando os olhos, era a forma, diziam-lhes, de reduzir o perigo de contágio. A palavra afecto tinha sido retirada do Novo Dicionário da Nova Língua Oficial.

Não se sabia quem já estava curado e quem era um PEPASAPU – um perigo para a saúde pública – pelo que continuava o Afastamento Preventivo. Há muito que as empresas regressaram ao trabalho, excepto as do turismo, pretendia-se o mínimo de contacto com o exterior. As fronteiras mantinham-se fechadas, entre dentes chamava-se a cortina de aço.

Um dia do terceiro mês as forças de segurança haviam prendido dois homens que se tinham abraçado. A pena de 3 anos de desterro aplicada serviu para garantir que não haveria segundos exemplos. Nesse dia também a palavra abraço foi retirada do dicionário. Um casal apanhou uma pena ainda mais grave, tinha-se não só abraçado como beijado.

Aos poucos a reacção tinha começado, nas farmácias aderentes, únicos estabelecimentos que podiam ter uma sala não vigiada, para tratamentos, os revoltosos juntavam-se, dois a dois e abraçavam-se. Por norma um abraçador fazia um turno de seis horas.

Na rua os abraçadores reconheciam-se por sinais discretos.

Até que um dia a revolução começou, num acto simultâneo diversos falsos recitadores, já há muito que não havia jornalistas, apenas recitadores de notícias forjadas, num directo, uma falsa recitadora havia abraçado um ministro. Foi o caos sobretudo porque foi apanhado em grande plano e o ministro sorriu e instintivamente respondeu ao abraço.

Foi o dia um da revolução.

05
Abr20

Viagem 2

arp

A irresistível atracção pela fuga levou-me de novo a dar uma volta pelo passado. Cheguei, eram pouco mais de sete da tarde. Todo o espaço estava posto para as festas, era a feira da Piedade. No ar a mistura de cheiros a farturas, cachorros, pipocas e cerveja. Num canto mais afastado um grelhador de febras lançava fumarolas no ar. As febras, demasiado salgadas iam sendo entremeadas em bolas de pão caseiro. Um estímulo auditivo intenso, entre os risos, inícios de frases ditas alto, por quem tinha já emborcado vários copos de três e umas imperiais, a música do carrossel, um hit do Nilton César, “receba as flores que lhe dou” seguida da “namoradinha de um amigo meu” do Roberto Carlos. Por cima da algazarra ouviam-se as vozes dos promotores dos carroceis, sentados numa girafa parada.

Uma mulher em cima de um atrelado anuncia cobertores de papa. A voz saia-lhe por um megafone que empunhava com a mão esquerda enquanto com a direita revolvia os cobertores.

Numa tenda vendiam-se bugigangas de plástico numa miscelânea de brinquedos e eventuais utilidades para a cozinha. Noutra banca, colares de pinhões e chupa-chupas piramidais que nos faziam cuspir papel misturado com açúcar com sabor a laranja.

A agitação do andar levantava o pó omnipresente.

Numa barraca, de zinco ondulado, três mesas de matraquilhos esperavam-me, já lá paravam três amigos, vestiam calças à boca-de-sino e pullvoers dois números abaixo e o cabelo 3 números acima. À moda, a excepção era A. com calças Wrangler vindas de uma ida a Espanha em conjunto com os Solanos e duas garrafas de Brandy .

As partidas foram disputadas na versão “perde pagas”. Fui o último a chegar, também vinha de tão longe. No perímetro tinham ficado a Maxi Puch de L., vermelha e a Vela Solex de R. de um improvável amarelo. No parque improvisado outras viaturas a dois tempos, com motor Sachs e cor laranja. O dia não era de jantar, mas de ir comendo. A ronda dos cachorros acabava nas farturas, onde um homem, com um pano da loiça por avental, despejava a massa numa sertã com óleo quente com uma seringa tirada de um gigante sem nome. A bebida, em excesso, cerveja Clock, não era para tirar a sede, mas a passagem da certidão de adulto, de homem. E foi assim que L., já bebido em excesso, foi enfiado nas cadeiras que rodopiavam presas por correntes. O movimento centrífugo punha os passeantes perto da horizontal, mas o estômago não aguentou.

O fim de noite, foi passado encostado às varolas fazendo corridas de patos adquiridos ali mesmo. A distância às raparigas era por vezes tão grande como a deste percurso. Noites como aquela não eram mistas.

O álcool tinha de ser solidificado, fomos ao Pão com chouriço, a bebida, com justificações diversas, passou ao pirolito e larangina C.

A noite acabou fria, em casa, com uma tosse tetatralizada para justificar o Vicks que escondia o cheiro do tabaco e do álcool.

Amanhã? Bem amanhã…

05
Abr20

viagem 1

arp

Vou confessar-vos uma coisa: furei o bloqueio e viajei. É verdade, mas garanti que não precisava de quarentena e que não contaminaria ninguém. Já voltei e consegui cumprir esses dois objectivos. Fui o mais longe que consegui. Atravessei a barreira do tempo e fui ao passado. Consegui aproveitar uma inflexão do espaço e andei para trás cinquenta anos. Cheguei à escola, estavam todos de bata branca, cantavam o hino enquanto a bandeira era hasteada. Eram todos bastante magros. Havia uma excepção apenas. O tempo estava ameno e as árvores estavam floridas. Mas já passara a hora do almoço, o cheiro de quem tinha passado a manhã a correr absorvia o aroma das duas tílias do passeio fronteiro.

Entrei após o hino e sentei-me na carteira dupla com o tampo levadiço e um buraco para o tinteiro que já ninguém usava. Se levantássemos o tampo podíamos ler “o Carlot tem pilhos” em escrita esculpida no pinho, a pressa ou a incompetência retirada duas vogais à frase, mas o espirito não se perdera. Era o momento da geografia, e por detrás do cheiro a soalho lavado, eram declinados os rios de Portugal “o rio Douro é um rio que nasce nos picos da Serra de Urbión e tem como afluentes em Portugal, os rios Inha, Águeda, Côa, Sabor, Tua, Pinhão, Torto, Távora, Corgo, Varosa, Paiva, Tâmega, Sousa e Tinto.” Os nomes foram senod escritos a branco no quadro preto, com um chiar arrepiante do giz. Seguiu-se um tempo, que pareceu infinito, em que a declinação foi repetida, como um mantra, ou uma ladainha, a cada palavra havia um batimento no chão com uma cana, marcando o compasso. Só se sentiu o fim quando foi audível o toque de um sino. Todos fitaram o professor aguardando a ordem para se sair, ordeiramente. Quando a ordem foi dada o ruído das solas cardadas ressoou por todo o edifício. Para trás ficaram dois, que sabiam ir ser objecto de chacota ou mesmo de agressão. Olhava para um laboratório darwinista.

O recreio, de chão térreo, tinha duas balizas improvisadas e uma oliveira. Ambos eram disputados, se bem que garantido, só o dono da bola e mesmo assim à baliza.

No tardoz enfileiravam-se os mais velhos para saltarem ao eixo. Outros, sobre um círculo traçado, arremessavam os piões, “à homem”, por cima, ou “à menina” para a frente. Na zona mais húmida fora feita uma cova e jorravam berlindes multicolores. Ou melhor de várias cores. Multicolor apenas um, o “abafa”, o terror dos proprietários mais novos que jogavam com esferas metálicas ou berlindes plásticos. Preciosidades, transportados em sacos de tecido com fecho de corda.

Sob a oliveira onde vários alunos se empoleiravam como cabras no magreb, jogava-se à navalha sob o olhar do professores.

Uma continua puxava pelo orelha de um primeiro-anista que fizera “alguma”. Mas o ruído e a agitação manteve-se, pelo menos até ao novo toque do sino.

Acompanhei a saída, uma passagem em casa para tirar a bata e lanchar e rumo à catequese, no frio de uma sala de pedra, que não aquecia nem nos agostos mais intensos.

O regresso foi rápido, abri os olhos e estava no dia 31.

 

 

 

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