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Quem conta dois contos

Quem conta dois contos

07
Jan18

a viagem

arp

As viagens começam com um solavanco. Físico como quando o comboio arranca ou na alma, quando partimos na demanda de uma epifania. A nossa incapacidade para ver a estrela que temos ou queremos seguir atrasa-nos a partida. Outros há que se consideram livres porque incongruentes e partem, sem estrela nem procura, mas quem não procura também nunca encontra. Foi assim que aconteceu com ele. Entrou num comboiou numa tarde de outono ao som do apito do guarda-freio. Era domingo. O primeiro solavanco sentira-o em casa quando o sentido da vida que levava deixou de o fazer. A velha mala de cabedal castanho com duas correias foi preenchida com um conjunto de roupas para vários climas e estados de espírito. Deixara o canário com a porteira e dirigira-se à estação. Comprou bilhete para o primeiro internacional que apanhou por pouco. O bilhete era de primeira, mas na corrida entrou na porta de segunda que era a terceira, riu-se quando pensou nesta aritmética. A carruagem ia cheia. Ainda em pé olhou um casal saído de um quadro do Botero e que lhe tapou a passagem. A vida fora-lhes dura via-se pela dureza da pele e do olhar, mas compensadora no traje e nos adereços. Pensou se estariam a fazer um balanço dessa viagem de anos, nesta viagem de dias. Furou pela coxia vendo as pessoas que olhavam a paisagem sem se aperceberem que dia após dia contemplavam a metáfora de Sophia. Passou, depois, pelo vagão restaurante onde a variedade da oferta não chegava para alimentar a alma. Chegou por fim à “sua” carruagem. Estava cheia de espaços e de pouca gente. Sentou-se num banco no sentido da marcha. Considerava que quem se sentava nos bancos contrários tinha alma de caranguejo. Todos olhavam alguma coisa, o telefone, os sapatos comprados na véspera, o cinto da senhora magra, a maquilhagem excessiva da rapariga loira. Enquanto olhavam não viam os campos de vinhas e restolhos pintados por um Deus impressionista nem imaginavam a música além do ritmo sincopado das rodas nas juntas dos carris. Pensou nos cheiros do comboio como nas oitavas de um piano. Tinha entrado do lado piano e chegara agora ao forte. Olfativamente era a abertura 1812. Começou a trovejar, mas só aumentou o efeito cénico da paisagem do Deus impressionista. Era como se Cézane tivesse pintado a quatro mãos com Dali, ou talvez só Van Gogh. Abriu uma janela por onde entrou o cheiro a terra molhada e saiu o Chanel. Ninguém reagiu. Pensou que viajar era, no fundo, apenas um estado de espirito. Que um tetraplégico preso a uma cama viajava mais que toda esta gente. Cego é o que não está preparado para ver. Paraplégico é o que não percebe que pode andar. Sentiu-se liberto. O comboio estremeceu com o abrandamento. Ou seria a alma? Saiu na estação e esperou pelo comboio de regresso. Quando chegasse libertaria o canário.

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