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Quem conta dois contos

Quem conta dois contos

25
Fev18

jornais

arp

Como sempre saía de casa cedo. Gostava do ar fresco da manhã, do frio mesmo. Da rotina matinal fazia parte uma paragem no quiosque. Situava-se numa esquina, como todas as esquinas deste mundo, perpassadas por pessoas apressadas a caminho do trabalho ou do que pensavam ser a sua vida. Na única abertura, num dos lados do octógono vidrado habitava o humor do senhor Pereira. O mau. Como as notícias que apregoava. Mortos e feridos, guerras e desgraças. Folheava alguns jornais e revistas e acabava por comprar sempre o mesmo.

O senhor Pereira, hoje, divagava sobre a existência de Deus, como Nietzsche, mas de forma menos poética. Assim falava Pereira.

As restantes sete faces do octógono tinham escarrapachadas nos vidros revistas e jornais amarelecidos pelo tempo. A guerra de Nagorno-Karabakh chegou ao fim alertava uma primeira página em letras tamanho 25 e num preto que, como a guerra também tinha chegado ao fim, havia muito, dando lugar a um cinza, como nos escombros sombrios da guerra. Uma mulher com um biquíni king size em pose com a legenda: “verão 1996” capeava uma revista feminina. Os vidros estavam sujos de pó, com a idade das revistas que mostravam e, como elas, parados no tempo. Num vidro estavam colados vários cartões com ofertas de serviços. O limpa-chaminés, que limpava rápida e eficientemente, dava a sua direita a Ravi, que alinhava os chakras, todos os sete de forma a repor a sua (nossa) energia e a esquerda a Fernando, desentupidor de esgotos. Por cima António, reparava estores. Finalmente o professor, de nome impronunciável que garantia soluções para todos os problemas, saúde ou dinheiro. Enfim todos prometiam a limpeza e reparação, da chaminé à alma, tudo se encontrava pespegado num vidro sujo.

Assim falava Pereira: se Deus existisse não haveria guerra, nem pobreza. É certo que as pessoas não faziam o que Deus manda, se fizessem…

A visão era a de um Deus dono de um circo que ira orientando os artistas. Quando não cumpriam as regras caiam do trapézio. No fundo não diferia das crenças supersticiosas, das cadeias que não podiam ser interrompidas sem que algo de grave acontecesse. A todos os que cumpriam era garantida a fortuna, tipo lotaria do natal, mas a muitos.

Deixou o senhor Pereira divagando para um casal que pensava ir comprar um jornal e acabava frequentando um seminário ou pelo menos uma palestra, hoje sobre teologia.

Cada manhã havia uma repetição, mas com variações dos temas. Esta rotina decorria havia mais de vinte anos. O senhor Pereira era o oráculo da Damaia. Tinha solução para quase todos os problemas que afectavam o mundo. Sorriu e foi também ao que pensava ser a sua vida.

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