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Quem conta dois contos

Quem conta dois contos

25
Fev18

peregrino

arp

Saíra só, a data não era festiva, movia-se apenas pela sua necessidade, inconfessável, de encontrar, ou de se encontrar. Pusera-se a caminho, como desde o princípio dos tempos, outros homens, o haviam feito em situação semelhante. Começara como muitos, pensando que ao atingir o local sagrado, porque o haveria de fazer em modo esforçado, atingiria a sabedoria, ou a calma, ou o nirvana, ou o que raio pensava que lhe faltava.

Roupa leve, apesar do frio, sapatos cómodos e velhos. Uma pequena mochila.

O caminho começava com uma descida, o dia estava ventoso pelo que caminhava quase sem esforço, com o vento pelas costas e acompanhado por um aroma a rosmaninho. Sentia como que um bafo de Deus a empurrá-lo. A vida, afinal, até que não era dura e a ajuda divina parecia torná-la ainda mais ligeira. Ou seria só uma parte dela. Seria a vida decomponível em camadas, seria dicotómica? Branco e preto, Bom e mau, Fome e fartura, pecado e santidade?

Ao fim de cerca de 1 km, uma parcela diminuta da viagem, a pendente inverteu-se, tal como o vento. Aquilo que parecera um passeio era agora um esforço que ameaçava tornar-se insuportável. Se calhar a vida era mesmo dicotómica. Maniqueísta. Mas será que não haveria gradações de cinzento? Tipo, pelo menos, branco sujo e cinzento antracite. Possivelmente as túnicas dos antigos peregrinos, brancas no início da caminhada e branco muito sujo no fim. Se bem que esta evolução da cor do traje fosse a antítese da evolução da alma no caminho. Pelo menos assim era suposto. Começou a sentir os pés. Esses terminais do corpo começaram a sentir-se. A dureza da vida sentia-a agora nos pés, mas tinha de seguir e, pior, regressar seria ainda mais penoso. O escape dos carros largava um fumo que lhe arranhava a garganta, mais uma nota, como na vida, as subidas custavam. Seriam as subidas profissionais ou também as morais, do espirito, da alma? Tipo sair do rés-do-chão da vida.

Olhou à volta tentando ignorar as dores, o cansaço, os campos estavam acinzentados. Apenas salpicado aqui ou ali por uns pingos de côr. Uns vermelhos e uns azuis.

As horas foram passando e com elas a claridade. Uma penumbra caiu sobre o caminho. Foi-se fechando até um breu cerrado. Era noite de lua nova e frio velho. Após algum tempo a vista habitua-se e conseguia ver à sua volta. Como na vida. A capacidade de habituação às negruras da vida é maior e mais rápida do que a da luta contra essas negruras. De tempo em tempo estrada iluminava-se, um ou dois faróis. Mais ou menos intensa. Mínimos ou máximos. Como aquelas pessoas que se atravessam na nossa vida. De forma efémera, por vezes rápida, demasiado rápida, mas irradiam luz, como os pirilampos. Ou uma viagem ou um concerto. Também há quem brilhe na escuridão por via da incidência dos outros, como se usassem um colete reflector.

Com a escuridão vêm os medos. A ausência de luz ou da luz, fazem vacilar as nossas convicções. Na segurança, por exemplo, mas também no futuro, seja ele mais próximo, literalmente ao virar da esquina, ou mais longínquo.

Sentiu sede e fome. Parou e pouco depois sentiu também frio. Entrou dentro de uma mata de pinheiros que emanava um aroma a resina. A caruma sob os pés fazia ruído ao ser pisada. No chão um pássaro morto junto a uma giesta florida. Uma vez mais a dicotomia. Comeu, enfiou-se dentro do saco cama, vestido e adormeceu de imediato. Como quando sentimos que a vida se interrompe.

Amar o próximo como a si mesmo. Mas e quem não gosta se si. No fundo com um só mandamento dá proposta para outra situação básica: há que gostar de si. Sem gostar de si não será possível amar o próximo.

Fez os restantes quilómetros por atalhos de paisagens inspiradoras. De patine outonal entre os castanhos, os verdes escuros e os vermelhos, o cheiro a terra e húmus intensificara-se com uma chuva miúda que começara a cair de madrugada e não parara. As várias descobertas feitas haviam-lhe tirado peso de cima. Quanto mais andava e mais reflectia, mais se distanciava da sua corporalidade. Já não sentia os pés doridos ou as pernas.

Montes e vales, chuva, sol, descidas e subidas.

Aprendeu a bolinar quando o vento estava pela frente. Bolinar a alma, reflectindo de forma alternada. No passado e no que esperava fosse o futuro. Como o podia criar.

O velocidade aumentou já que o tempo parara, mas continuava a avançar, um pé à frente do outro.

Sem que se apercebesse chegara ao santuário. Parou, respirou fundo. Agradeceu a iluminação naquele fim de tarde escuro.

Let the force be with you

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